24 de outubro de 2006

Do Corpo que Dança o Ventre


Uma dança exótica, sensual. Tambores hipnóticos e movimentos convulsivos dos quadris das dançarinas causam sensações difíceis de explicar. Algumas dizem que vicia. Não duvido. Aliás, talvez tenha sido a droga mais pesada exibida na novela “O Clone” em 2002. A overdose de dança do ventre não deixou margem de comparação com nenhuma outra dança já exibida em rede nacional. Antes disso, já tinha feito a cobra subir ralando o tchan.

Por trás dos bastidores, nenhum glamour. O próprio nome, dança do ventre, segundo dizem, foi um termo inventado no final do século dezenove, por um empresário judeu, com o objetivo de causar sensacionalismo na feira mundial de Chicago. Tornou-se febre nos cabarés da época e por causa disso, até hoje o estilo de show que apresenta a dançarina coberta de brilhos, tecidos finos e paetês é chamado "estilo cabaré", para desespero das puristas que praticam essa dança.

Já o estilo tribal, muito em voga desde os anos 90, resgata danças praticadas entre os beduínos, Berbers e Tuaregs. Incorpora, também, elementos de outras culturas, como o flamenco e a dança indiana. Apresenta trajes mais sóbrios, maquiagem ritualística e uma dança onde o foco está no movimento. Dançam mais para si mesmas do que para o público. Por ter sido desenvolvido a partir de uma pesquisa de um grupo dos Estados Unidos, é chamado “American Tribal Belly Dance” (dança do ventre tribal americana). Ah sim, é uma dança estadunidense, não nos enganemos!

As mulheres que praticam a dança do ventre no Brasil são, em sua grande maioria, adeptas do estilo cabaré. Apenas no ano de 2002 o estilo tribal chegou ao país. Ambos os estilos, em nosso país, passaram pelo filtro das estadunidenses. Nossa dança com véus segue o padrão estadunidense, com um tempero brasileiro, é claro, mas a primeira influência sempre vem de lá. Apesar de termos uma riqueza cultural inestimável, nossa baixa auto-estima nos impede de exercer uma autonomia de criação. Com o tribal, o mesmo processo se repete, embarcamos na pesquisa estadunidense. Uma lástima! Hoje vemos clones das dançarinas californianas espalhadas pelas várias cidades do Brasil. Será que a Glória Perez fez uma profecia quando escolheu o nome da novela? Dança do Ventre - Clone... Clone - Dança do Ventre... Ironias à parte me pergunto: qual o motivo de pegarmos carona nas tribos alheias, se temos um referencial tão vasto de danças, como as dos orixás e outras tantas indígenas e as tradicionais e populares?

Praticando a dança do ventre desde 1993, comecei a atuar profissionalmente em 1997. Resolvi desenvolver uma pesquisa profunda sobre essa dança. Minhas primeiras impressões não foram animadoras. Encontrei mulheres torturadas, infelizes, desgostosas com seus corpos e suas vidas. Algumas miseráveis, outras enlouquecendo. Levei esse estudo tão a sério que virou dissertação de mestrado. Foi um trabalho pesado porque quando comecei a pesquisar, em 2003, não havia textos acadêmicos sobre esse tema. Graças a iniciativas pioneiras, hoje podemos encontrar algumas boas pesquisas!

Escolhi praticar a dança do ventre por acreditar que ela me libertaria dos padrões impostos por danças que exigem desempenhos sobre-humanos e corpos moldados para sua prática. Também chamava a dança do ventre de “dança de bolso”, já que ela podia ser levada para inúmeros espaços, desde bares, restaurantes, barcos, teatros, casas, enfim, uma gama de possibilidades. Com o tempo, fui aprendendo que não era bem assim. Para tudo existe um preço (clichê, porém muito bem empregado aqui). Dependendo do local da apresentação o tratamento é o pior possível, a dançarina não é vista como artista, tem o status quase igual ao de uma prostituta. E, com a popularização dessa dança, também desapareceu a liberdade da forma física.

Antes da novela, era comum que eu escrevesse textos que explicassem o que era a dança do ventre. Hoje não é mais necessário explicar, já que a grande maioria da população pensa que se tornou expert em cultura árabe e, por tabela, dança do ventre. Confesso que preferia minhas antigas referências às mulheres misteriosas com roupas esvoaçantes e brilhantes, cabelos compridos, muita maquiagem, causando espanto, admiração e muita curiosidade a respeito daquilo que faziam.

Os corpos das dançarinas de hoje precisam obedecer à estética de modelos e atrizes. As barrigas, que eram até bem vistas por causa das tremidas e ondulações, agora são um incômodo que precisa ser retirado com urgência. A minha barriga, com estrias de uma linda gravidez esteve tão em foco depois da novela que ganhei de presente uma plástica de abdômen enquanto fazia um show em 2002. Fiquei pasma em pensar que aquela pessoa, que me ofereceu um presente tão caro, provavelmente não tinha prestado atenção à minha dança, porque minha barriga se sobressaiu. Não houve grosseria, muito pelo contrário, a pessoa me cobriu de gentilezas dizendo que eu dançava muito bem e merecia ter um corpo esculpido. Por algum tempo fiquei em dúvida. O desespero em atender ao padrão das mídias é um vírus que poderia a qualquer momento me contaminar. Mas fui imunizada por um texto que circula pela internet e que dizem que foi o Arnaldo Jabor que escreveu, embora nada que circule na rede tenha a autoria confirmada... Independente disso, o que me chamou atenção no tal texto foi a parte onde ele dizia que as mulheres querem ser mercadorias sedutoras, disputadas e consumidas como um bom eletrodoméstico ou uma BMW, “porque ‘objeto’ é feliz e não sofre”.

Constatei embasbacada que a minha dança da libertação feminina poderia ser a grande armadilha que me levaria a querer ser igual às mulheres das revistas, das novelas e comerciais de cerveja. Lembrei da depressão pela qual já havia passado, na época em que fazia tantos shows que perdi a noção do que acontecia em minha vida. Dependendo da apresentação eu conseguia me sentir como uma peça de carne na vitrine de algum açougue, um pianista de churrascaria, malabarista de circo, dançarina em programa de televisão, enfim, nunca chegava a hora em que eu seria uma deusa etérea em contato com o divino feminino. E nunca chegaria, se eu não mudasse o rumo das coisas.

Como professora, posso dizer que minhas alunas também estão torturadas por causa de seus corpos. Sonham em retirar dobras, lipoaspirar barrigas imaginárias. Eu sempre as incentivei a se aceitarem como são, até porque são realmente lindas. Tenho tentado ampliar os horizontes de nossos grupos de estudo, mas para isso é preciso sair um pouco do tema ‘dança do ventre’, explorar o universo feminino a partir de novas referências. Danças de Orixás, Danças Indígenas, mas principalmente aquela Dança Interna, onde cada uma de nós pode criar a partir de um repertório pessoal, têm sido o bálsamo de que precisávamos para reencontrar nossas essências. Como coreógrafa, percebo que esse caminho alternativo tem melhorado a impressão que a dança do ventre causa no público.

Venho realizando esse trabalho há um certo tempo, e nem assim consegui ficar imune aos efeitos da “globalização” da dança do ventre. Descobri, com muito entusiasmo, outras iniciativas parecidas com a minha. O sagrado é em cada uma de nós. O acesso não está automaticamente ligado ao aprendizado de uma dança, mas na tomada de consciência e no despertar. Um pequeno esforço é necessário. Estar atenta é tarefa constante.

Quanto à minha barriga... Bem, ela virou patrimônio das mulheres que comigo se identificam. Um dia, a mãe de uma das minhas alunas disse que, quando me viu dançar, ficou de alma lavada. Ela nunca imaginou que poderia deixar de lado o complexo de ter barriga e dançar. Depois do meu show, percebendo que eu estava feliz e segura, resolveu que também poderia. Ela não foi a primeira e não será a última a se sentir assim. Portanto, apesar de hoje em dia minha barriga estar muito menor do que na época da foto que ilustra o presente texto (emagreci 9 kilos depois de aprender a comer no Egito e voltar a malhar), não pretendo eliminar completamente um instrumento tão eficaz de elevação da autoconfiança feminina. Minha barriga é sagrada, ela é o meu ventre. O termo dança do ventre adquire, assim, uma conotação absolutamente positiva.


A autora e sua barriga

16 de outubro de 2006

Dos que Desprezam o Corpo




Aos que desprezam o corpo quero dizer a minha opinião.

O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu próprio corpo, e por conseguinte, ficarem mudos.

“Eu sou corpo e alma” — assim fala a criança. — E porque sei não há de falar como as crianças?

Mas o que está desperto e atento diz: — “Tudo é corpo, e nada mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo”.

O corpo é uma razão em ponto grande, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.


Instrumento do teu corpo é também a tua razão pequena, a que chamas espírito: um instrumentozinho e um pequeno brinquedo da tua razão grande.

Tu dizes “Eu” e orgulhas-te dessa palavra. Porém, maior — coisa que tu não queres crer — é o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas: procede como Eu.

O que os sentidos apreciam, o que o espírito conhece, nunca em si tem seu fim; mas os sentidos e o espirito quereriam convencer-te de que são fim de tudo; tão soberbos são.

Os sentidos e o espírito são instrumentos e joguetes; por detrás deles se encontra o nosso próprio ser. Ele esquadrinha com os olhos dos sentidos e escuta com os olhos do espirito.

Sempre escuta e esquadrinha o próprio ser: combina, submete, conquista e destrói.

Reina, e é também soberano do Eu.

Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido, chama-se “eu sou”. Habita no teu corpo; é o teu corpo.

Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem sabe para que necessitará o teu corpo precisamente da tua melhor sabedoria?

O próprio ser se ri do teu Eu e dos seus saltos arrogantes. Que significam para mim esses saltos e vôos do pensamento? — diz. — Um rodeio para o meu fim. Eu sou o guia do Eu e o inspirador de suas idéias.

O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta dores!” E sofre e medita em não sofrer mais; e para isso deve pensar.

O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta alegrias!” regozija-se então e pensa em continuar a regozijar-se freqüentemente; e para isso deve pensar.

Quero dizer uma coisa aos que desprezam o corpo: desprezam aquilo a que devem a sua estima. Quem criou a estima e o menosprezo e o valor e a vontade?

O próprio ser criador criou a sua estima e o seu menosprezo, criou a sua alegria e a sua dor. O corpo criador criou a si mesmo o espírito como emanação da sua vontade.

Desprezadores do corpo: até na vossa loucura e no vosso desdém sereis o vosso próprio ser. Eu vos digo: o vosso próprio ser quer morrer e se afasta da vida.

Não pode fazer o que mais desejaria: criar superando-se a si mesmo. É isto o que ele mais deseja; é esta a sua paixão toda.

É, porém, tarde demais para isso: de maneira que até o vosso próprio ser quer desaparecer, desprezadores do corpo.

O vosso próprio ser quer desaparecer: por isso desprezais o corpo! Porque não podeis criar já, superando-vos a vós mesmos.

Por isso vos revoltais contra a vida e a terra. No olhar oblíquo do vosso menosprezo transparece uma inveja inconsciente.

Eu não sigo o vosso caminho, desprezadores do corpo! Vós, para mim não sois pontes que se encaminhem para o Super-homem!”

Assim falava Zaratustra.

Trecho retirado de:
Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo, Martin Claret: 1999. (255 pp).