28 de março de 2009

Conversa Mole? Só se for no Brasil...


Dia desses, vi que o canal GNT apresentaria um documentário em homenagem ao mês da mulher (março é o mês da mulher, os outros são de quem?). O que me chamou a atenção era o título do documentário: Rainhas da TV Árabe. Não pude assistir na primeira exibição porque tinha o aniversário de uma amiga, mas de pronto peguei os dias onde seria exibido novamente e anotei os horários.

Aguardei ansiosa ao grande dia e esperava encontrar alguma coisa sobre as atrizes, talvez algo falando sobre Fifi Abdo, da qual sou grande fã, apesar de ela dizer publicamente que prefere ser atriz a dançarina. Feio isso, não querer ser reconhecida pela dança, mas tudo bem, eu perdôo. Afinal a dança que ela traz em seu corpo prescinde de qualquer outro mecanismo para ser gostada. E suas opiniões pessoais realmente não interferiram em meu juízo de valor.

Fui surpreendida por um documentário que falava sobre o programa de televisão de maior audiência no mundo Árabe. É uma espécie de Saia Justa (aquele outro programa da GNT). Quatro mulheres de diferentes países árabes, uma delas sempre utilizando o véu para cobrir os cabelos enquanto as outras três se exibem em figurinos pra lá de ocidentais. Fiquei pasma! Além de amealhar uma audiência em torno de 200 milhões de telespectadores a cada programa, aquelas senhoras falavam sobre temas que me impressionaram, e eu que tinha ido ao Egito em 2005 e achava que sabia da vida de lá.

É que quando estive no Egito naquele ano, tinha a impressão de ter feito uma viagem no tempo. Acho que por isso cristalizei uma impressão de que desde aquela época nada teria mudado e se eu fosse novamente até lá, viajaria novamente no tempo e estaria com a sensação cultural de alguma década do século passado. Mas não! Graças aos deuses, o programa foi ao ar em 2006 e eu lamentei não ter testemunhado tudo o que ocorreu desde então.

No documentário vi algumas das reportagens das quatro apresentadoras do Kalam Nawaem. No Brasil traduziram o nome do programa para “Conversa Mole”. Que lástima! Meu amigo egípcio me disse que na realidade a tradução deveria ser “Conversa Delicada”. Também acompanhei a opinião do público a respeito do que era apresentado na TV. Os temas eram: masturbação, homossexualidade, terrorismo, cirurgia plástica, sexo pré-marital e educação sexual. O público se manifestava de variadas formas. Um telespectador chegou a enviar uma carta onde dizia que o lugar das apresentadoras era no inferno. Elas fizeram questão de ler a carta durante o programa, como forma de polemizar a respeito de atitudes como a daquele leitor que se dizia muçulmano. Elas questionavam se era correto que um adepto do Islã se comunicasse com elas em termos de baixo calão, praguejando e desejando o que existia de pior. Pensei comigo: corajosas, as meninas! Mais uma vez me orgulhei de ser mulher.

Passei a olhar no Youtube algumas entrevistas, embora eu não consiga entender muita coisa. Com a ajuda do meu referido amigo egípcio, assisti a uma entrevista de dois atores sírios onde diversos estereótipos da sociedade árabe eram discutidos em termos bastante sérios e profundos. Também fiquei muito feliz com a entrevista de Sami Yusuf, cantor de quem sou fã desde o primeiro contato nos programas de televisão egípcios de 2005. A entrevista dele foi mais fácil de entender. Yusuf não fala árabe e a entrevista foi em inglês. A temática não poderia ser diferente. Mais polêmica. As apresentadoras tocaram em vários pontos nevrálgicos do hábito que o cantor desenvolveu de abordar temas do Al Corão. Também perguntaram como ele conseguia cantar tão bem em árabe se não falava o idioma. Ele respondeu meio constrangido que estava aprendendo e que sua pronúncia era boa justamente por causa de seus estudos corânicos.





Estou em busca de imagens do programa onde a dança seja tema. Talvez seja pedir muito. O programa ainda nem completou 3 anos de existência e já fala de homossexuais e mulheres que se masturbam. Falar de dança ali ainda seria muito chocante! Está certo que nem tudo está às mil maravilhas, o homossexual que deveria comparecer ao programa foi ameaçado de morte e teve que ser entrevistado por telefone. A mulher que dava seu depoimento sobre masturbação estava no escuro, não se podia ver sua fisionomia. Mas ainda assim, dei vivas a tanta mudança de comportamento! Para algumas coisas a globalização funciona. Kalam Nawaem é um exemplo disso.

Talvez o melhor resultado que esse programa venha a alcançar é a mudança orientalista de nossas visões ultrapassadas a respeito da coletividade árabe. Eu mesma, que morei numa família do Cairo durante minhas pesquisas de campo, fiquei surpresa com as minhas reações em relação ao documentário. Esperava menos. Ainda bem que estive enganada. Al Hamdo LeAllah!!

12 de março de 2009

E a vovó foi pro asilo...



A dança do ventre é avó da dança contemporânea. Mas a dança contemporânea, com vergonha desse parentesco, tratou de colocar a velha num asilo. Afinal, a coroa à solta por aí dá trabalho demais, subindo em cima das mesas, freqüentando boates e cabarés, locais impróprios para uma senhora de idade tão avançada...

Ironias a parte, duas das três precursoras da chamada dança moderna se inspiraram na febre orientalista que tomou conta do cenário artístico e cultural da segunda metade do século XIX, como aponta Toni Bentley no livro Sister of Salome. Loie Fuller e Ruth St. Denis buscaram nas danças orientais os temas que proporcionaram alternativas aos padrões vigentes na época. Os planos de luz que utilizavam, figurinos, véus e aromas são provas da participação da dança do ventre nas idéias de suas composições artísticas.

Fuller se destacou por trabalhar com véus, construindo estruturas de grandes proporções que cobriam praticamente todo o seu corpo. Denis foi arrebatada pela cultura oriental a ponto de alguns autores escreverem que o orientalismo era a sua religião (BENTLEY, 2002: 44). Numa época onde as mulheres só trabalhavam com dança se estivessem vinculadas a alguma grande companhia, Ruth St. Denis optou pela carreira como criadora e bailarina independente após entrar em contato com a imagem de uma deidade egípcia em um pôster. Essa imagem a "hipnotizou", fazendo com que passasse a pesquisar um estilo de dança interpretativo. Seus temas eram usualmente "exóticos" e sua dança tinha como principal meta mostrar ao público ocidental que as danças do oriente eram reais e não fantasias de contos de fadas (BUONAVENTURA, 1998: 124-6). A terceira precursora era Isadora Duncan, que se libertou do espartilho inspirada pela cultura helênica. Mas a dança do ventre, embora seja uma prática popular também na Grécia, não exerceu maiores interferências no trabalho de Duncan.



Ruth St. Denis

Os véus de Loie Fuller são muito similares aos conhecidos véus wings utilizados atualmente pelas dançarinas do ventre. Não há como saber qual dos véus veio primeiro, se Fuller se inspirou em estruturas que já existiam nas danças orientais ou se a dança do ventre se aproveitou de uma inovação da artista para criar um novo estilo. O que se sabe é que quando em 1892 viajou dos Estados Unidos - sua terra natal - para a Europa com o objetivo de dançar em Paris, Fuller já possuía uma longa carreira como performer e era conhecida por utilizar véus de seda e efeitos de luz (BENTLEY, 2002: 44). Considerando-se que a dança do ventre só passou a ser mais amplamente divulgada em solo americano na última década do século XIX, podemos imaginar que há uma maior probabilidade de que Fuller tenha desenvolvido essa criação, ampliando os véus com extensores de madeira nas pontas. Talvez ela tenha se inspirado nos véus das danças orientais e contribuído para torná-los mais compridos.



Loie Fuller

Em meados do século XIX foram organizadas exposições mundiais no ocidente que divulgaram, entre outras coisas, culturas de vários países promovendo um intercâmbio artístico onde bailarinas do oriente migraram para Europa e América. Mas as atrações mais genuínas algumas vezes não agradavam ao público, como na descrição do que aconteceu com o Palácio Persa de Eros construído na Grande Exposição Mundial de Chicago em 1893. Segundo as pesquisas de Linda Carlton, publicadas em seu livro Looking for Little Egypt, uma autêntica companhia persa foi trazida para demonstrar habilidades atléticas, o tear de tapetes e lapidação de pedras preciosas naquele palácio construído numa área especial para o entretenimento daquela exposição. Mas o público não tolerou o caráter instrutivo dessas atividades e o desapontamento transformou a atração em um grande fiasco, fazendo com que seus gerentes mudassem radicalmente a programação. Dançarinas de Paris com suas danças e roupas pseudo-orientais, rapidamente trouxeram a audiência esperada, ainda que o público fosse exclusivamente masculino (CARLTON, 2002: 20-3).

A preferência dos consumidores pela farsa fazia com que os artistas modificassem suas obras com o objetivo de permanecer em cartaz e garantir seus cachês. Com as danças se deu um processo de modificação e incorporação de elementos ocidentais tais como uso do espaço cênico e do corpo, instrumentos musicais e figurinos. Ao que tudo indica antes do século XIX não existia o que hoje conhecemos por dança do ventre. O que havia eram diversas manifestações artísticas nos inúmeros países árabes, como ainda hoje podem ser vistas. Mas quando passaram a se apresentar no ocidente, essas manifestações foram se homogeneizando, dando origem ao que hoje conhecemos como dança do ventre. Essa dança, então, teria características de várias danças de diferentes países do oriente somadas aos movimentos rebuscados das danças ocidentais. O resultado foi o desenvolvimento de uma arte híbrida que passou também a ser praticada nos países árabes e orientais como um todo, num processo de retroalimentação.

E todo esse processo fertilizou o solo cultural e artístico do início do século XX para que germinassem os primeiros passos da dança moderna, libertando os pés das sapatilhas e os corpos dos movimentos codificados do balé clássico. A partir disso, outros processos criativos pipocaram pelo mundo afora, culminando com o que hoje conhecemos por dança contemporânea. Porém, não se fala sobre essa relação entre dança do vente e as tendências artísticas mais valorizadas na área de dança. É um assunto tabu. E a dança do ventre permanece um tema praticamente invisível, principalmente nas pesquisas universitárias.

Um conceito útil para se compreender como a dança do ventre pode exercer fascínio e ao mesmo tempo permanecer subvalorizada no cenário artístico ocidental é discutido por Joshua Taylor, em seu artigo "Two Visual Excursions". Taylor fala do excitamento diante do exótico e desenvolve o conceito de "artefato etnológico"(i) para teorizar sobre o contato ocidental com obras de arte provenientes de outros contextos culturais. Segundo esse autor, independentemente de possuirmos um conhecimento prévio sobre a cultura de onde a obra se originou, podemos experimentar uma espécie de hipnose diante de suas formas.

No caso da dança do ventre essa hipnose é reconhecida e descrita por Wendy Bounaventura em dois de seus livros com a mesma citação do escritor francês Charles Gobineau, que registrou suas impressões sobre o contato com aquela dança da seguinte forma:

Horas se passam e é difícil mandar alguém embora. É dessa forma que os movimentos das garotas dançarinas afetam os sentidos. Não há variedade ou vivacidade e raramente existe uma variação para algum movimento súbito, mas os giros rítmicos exercem um torpor delicioso sobre a alma, como uma intoxicação quase hipnótica (GOBINEAU apud BUONAVENTURA, 1998: 16; 2004: 263)(ii)

Quando Taylor apresenta a noção de "artefato etnológico" ele o faz em oposição ao termo "arte". Refere-se ao modo como são denominadas as obras provenientes de outras culturas quando catalogadas no ocidente e discute a dificuldade encontrada pelos críticos de arte em defini-las, quando essas obras passam a fazer parte do acervo dos museus como objetos artísticos. Isso ocorre porque muitas vezes esses objetos são coletados com finalidades arqueológicas ou antropológicas e os textos científicos são as fontes mais utilizadas como referência para falar sobre esses "artefatos" (TAYLOR, 1980: 26-36).

As danças orientais apresentadas na Exposição Mundial Chicago, ainda que se questione sua autenticidade, arrecadaram imensas quantias em dinheiro por causa do grande choque causado às mulheres da Era Vitoriana, que viviam apertadas em seus espartilhos e aprendiam os passos de suas danças refinadas e "civilizadas" com professores especializados. O sensacionalismo despertado a partir dos movimentos improvisados e "selvagens" dos quadris das dançarinas da feira atraíram milhares de curiosos, que muitas vezes chegavam a Chicago com o único objetivo de assistir a essas apresentações (CARLTON, 2002: 46-7).

O ocidente está condicionado a um modo de ver a arte. O artigo de Joshua Taylor sugere que conceitos e idéias ocidentais precisam ser revisados. Quando se fala em dança do ventre é comum que os profissionais contemporâneos da área de dança sejam remetidos a essa noção de "artefato etnológico". Como se não fosse uma dança artística e sim algo funcional, voltado para o entretenimento, que não possui atributos válidos para ocupar um palco, para ser pesquisada como tema central de um trabalho acadêmico ou servir de inspiração para trabalhos contemporâneos de arte. A falta de isenção na avaliação de objetos de arte de outras culturas coloca em risco o sentido inerente à criação desses objetos. A carga cultural da qual os críticos de arte e outros profissionais do ocidente estão imbuídos contamina as descrições e os juízos a respeito das obras, porque raramente essa carga é reconhecida por esses profissionais.

É tanto que, mesmo exercendo papeis históricos importantes, as danças orientais não estão catalogadas nos livros mais conhecidos de História da Dança. Desacreditada a dança do ventre passou a perambular às margens do cenário artístico contemporâneo, como se fosse um membro indesejável de uma família que não quisesse tê-la por perto. E assim, a vovó mais uma vez vai para o asilo, pra onde são enviados aqueles que se deseja evitar. Mas o fato de a terem ignorado não fez com que fosse totalmente esquecida, tanto é que agora surgem pesquisadores dispostos a rasgar o véu que a deixou invisível em alguns cenários por um certo período.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENTLEY, Toni. Sisters of Salome. New Heaven: Yale University Press, 2002.

BUONAVENTURA, Wendy. Serpent of the Nile: Woman and Dance in the Arab World. New York: Interlink Books, 1998.

CARLTON, Donna. Looking for Little Egypt. Bloomington, USA: IDD Books, 2002.

MARTIN, Randy. "Dance Ethnography and the Limits of Representation" in DESMOND, Jane C (Ed.). Meaning in Motion: New Cultural Studies of Dance (Post-contemporary Interventions). Durham, NC: Duke University Press, 1997. (320-43).

TAYLOR, Joshua C. "Two Visual Excursions" in MITCHEL, W.J.Thomas (ed.). The Language of Images. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1980.(25-36).

Artigo extraído da internet:
MENDES, Ana Carolina. "A dança que vemos, que nos olha" [online]. Artigo apresentado no 13º encontro da ANPAP, Disponível na Internet:

Acesso em 22/12/2004.


i"Ethnological Artifacts" (Tradução Livre da Autora do Trabalho).
ii "Hours pass, and it is difficult to tear oneself away. This is how the motions of the dancing girls affect the senses. There is no variety or vivacity, and seldom is there a variation through any sudden movement, but the rhythmic wheeling exerts a delightful torpor upon the soul, like an almost hypnotic intoxication."
(Tradução Livre da Autora do Trabalho).