7 de fevereiro de 2007

O Ventre dos Homens


Homem tem ventre?

Tive uma professora de dança do ventre que adorava ser sádica com os homens e sempre dizia que eles eram desprovidos de ventre, porque não podiam gerar vida, não tinham útero, ovários... O Dicionário Júnior da Língua Portuguesa de Geraldo Mattos (2001) apresenta três definições do que seja ventre

sm. 1. Parte do corpo humano e de outros animais vertebrados onde estão localizados o estômago, os intestinos e outros órgãos: abdome, barriga - O médico apalpou o ventre do menino. 2. Região que fica por baixo da pele dessa parte - O menino sente dores no ventre. 3. Parte do corpo feminino onde a criança se desenvolve antes de nascer: útero. (pg.722).

Tendo em conta as duas primeiras definições e os exemplos dados com o ventre do menino, presumo que, apesar da terceira definição, homens têm ventre.
E no Egito não só têm o ventre como dançam. Dança do Ventre.

A dança do ventre masculina é uma controvertida temática, porque no Brasil muitos de nós já assistimos a performances masculinas, peculiares, por vezes bizarras. Homens travestidos ou que se fazem femininos. Alguns que chegam disfarçados, andróginos e que em certos momentos de suas danças revelam seu segredo - o fato de serem homens. Com um certo prazer irônico, tipo "enganei vocês, vai dizer que o senhor não sentiu tesão por mim, seu pervertido!". Detesto essas danças. São de mau gosto! E não é sobre elas que quero falar. Muito menos dar força a essas práticas, legitimá-las. Dancem como queiram. Só não contem com o meu apoio e apreciação.

Pois bem, voltando ao Egito, quando lá estive em novembro de 2005 assisti a muitas dessas danças masculinas, com movimentos idênticos aos que eu aprendi em sala de aula, ondulações, tremidos, oitos de quadril, camelo... Eles dançavam, mas não eram femininos. Eram viris. Estavam por todo canto, nas esquinas, nos mercados, nas ruas, nas casas e na televisão. Conquistando as mulheres com suas danças do ventre.

Curiosa sobre essas manifestações até então por mim desconhecidas, foi com grande satisfação e surpresa que dei de cara com o livro Coreographics Politics de Anthony Shay (2002). Esse livro é uma preciosidade, por abordar as políticas coreográficas responsáveis por imagens equivocadas das manifestações artísticas em diversos países. Assunto vasto, para outros vários artigos. Mas quando fala sobre a dança egípcia masculina, Shay trouxe para a minha vida revelações surpreendentes.

Quando define o que é a dança do ventre, Anthony Shay afirma que é uma dança solo praticada por homens e mulheres. Mas a performance masculina teria, segundo ele, sido suprimida pela mentalidade colonialista dos britânicos e franceses que dominaram o Egito e desenharam um modelo do que fosse adequado ou inadequado para o cidadão egípcio que pretendesse se "civilizar". Em 1881 e 1882 se instalaram no Egito escolas com o sistema britânico de ensino, onde foram amplamente difundidos textos que continham idéias sobre o atraso, a negligência moral e a indolência dos egípcios. Também enfatizavam a necessidade de se adotar a moral inglesa. Tudo isso foi prontamente absorvido pela população.

Assim, o conhecido coreógrafo Mahmoud Reda desenvolveu estratégias coreográficas que lhe renderam suporte financeiro e apoio governamental, tendo como primeira grande mudança artística em sua companhia a proibição da dança do ventre masculina. Essa proibição, segundo Shay, seguiu as recomendações governamentais sobre quais seriam "os movimentos apropriados ou não para o corpo masculino (inglês, e agora egípcio)" (p. 148).

E então, numa atitude parecida com a da minha professora de dança do ventre, o tal coreógrafo pareceu dizer que homem não tem ventre. Ou pior ainda, Mahmoud Reda amputou o ventre dos homens egípcios, roubou-lhes o direito de dançar daquela forma. Mas graças aos deuses, essas mudanças oficiais não conseguem apagar a força vital da corporalidade humana. E, como ocorre em grandes manifestações de resistência, eles continuam a vibrar, ondular, seduzir e encantar com seus ventres masculinos.