14 de agosto de 2007

A Ambivalência Corporal como Facilitadora das Diversas Formas de Exploração do Ser Humano

Nossa sociedade tem demonstrado grande ambigüidade em relação ao tema corpo e corporeidade. Percebo a existência de uma nítida separação entre corpo e mente, onde a mente é supervalorizada, bem como seus atributos racionais e lógicos. E a partir disso, poderíamos supor que o corpo tem permanecido em segundo plano, praticamente desprezado. Mas, ao mesmo tempo testemunhamos atualmente a grande preocupação com a estética corporal e os avanços da ciência no que diz respeito à longevidade e à manutenção da beleza. Todavia, essa preocupação desconsidera alguns aspectos da corporeidade pois o foco está restrito às formas do corpo em detrimento de conteúdos como a sensibilidade e a consciência corporal, os sentidos e os movimentos, entre outros.

Essa ambivalência corporal contemporânea auxilia os processos de exploração do corpo, porque a partir do momento em que a mente é privilegiada e o corpo é desconsiderado como agente da produção de conhecimento, esse corpo torna-se mero objeto, composto apenas de sua materialidade. Elizabeth Grosz no artigo “Corpos Reconfigurados” afirma que as discussões filosóficas a respeito do corpo até o final do século XX tentaram “minimizar ou ignorar completamente seu papel formativo na formação de valores” (GROSZ, 2000: p.47).

Entrando em contato com os programas de Combate e Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e ao Tráfico de Pessoas, observei a lacuna existente no que dizia respeito às considerações sobre o corpo e a corporeidade. Conversei sobre essa questão com algumas pessoas envolvidas nesses programas e encontrei no projeto TIP (Tráfico Internacional de Pessoas) da OIT (Organização Internacional do Trabalho) o apoio para iniciar um trabalho que visasse desenvolver reflexões e atividades de corpo.

As primeiras atividades foram realizadas durante o Seminário do PAIR (Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-juvenil no Território Brasileiro) do Governo Federal em parceria com Organismos Internacionais e a Sociedade Civil, ocorrido de 23 a 25 de setembro de 2006 na cidade de Fortaleza – CE. Foram oficinas de expressão corporal e sensibilização para o tema do seminário, direcionadas aos participantes inscritos. Os objetivos eram minimizar o stress corporal, visando otimizar as outras atividades durante o evento, por meio de alongamentos e auto-massagem; despertar a consciência corporal; promover reflexões sobre a transformação do corpo humano em mercadoria que pode ser explorada, traficada e violada de várias maneiras. Esses temas foram trabalhados a partir de vivências onde os participantes eram levados a experimentar sensações de limitação da mobilidade corporal com conseqüente perda de autonomia sobre seus gestos. O primeiro resultado se manifestou imediatamente após as atividades, quando os participantes conseguiram traçar paralelos entre as práticas corporais e situações vivenciadas no dia-a-dia inclusive no que dizia respeito a seus trabalhos no combate à violência sexual infanto-juvenil. Além disso, no decorrer dos 3 dias de seminário, os integrantes passaram a perceber melhor a postura de seus corpos enquanto estavam sentados durante as aulas e debates.

Ao avaliar positivamente essas atividades, comecei a pensar em aproveitar os espaços onde o corpo estivesse em foco para criar mecanismos mais eficientes de sensibilização. Considerando o tópico que visa fortalecer o protagonismo juvenil presente no Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil e percebendo que a participação dos jovens ainda era incipiente, sugeri a realização de cursos de formação e capacitação de jovens para que eles pudessem passar a ministrar as oficinas de corpo durante os eventos relacionados ao tema.

A iniciativa corajosa e pioneira de desenvolver esse projeto foi prontamente acolhida pelo Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência do município de São Vicente – SP, que acumula uma experiência de quase oito anos no desenvolvimento de ações visando o enfrentamento da violência sexual, ocupando um lugar de referência no município e na região. Encaminhando a proposta para o projeto TIP da OIT, essa instituição encontrou a parceria necessária para realizar a capacitação.

De 05 a 09 de março de 2007 foi concretizada a primeira formação que teve duas linhas principais, pois além do objetivo de formar facilitadoras para atividades de expressão corporal a OnG estava naquele momento necessitando fortalecer sua equipe para desenvolver uma atividade considerada de extrema importância pelas integrantes da instituição: a prática da dança do ventre. Por isso, o método de formação foi denominado “Método Aiua! de Formação em Dança (do Ventre)”. Os parênteses significam que apesar de ser uma especialização em dança do ventre o foco não se restringe a ela, passando também por outras abordagens da dança e pela expressão corporal.

A dança do ventre tem sido uma das formas mais eficientes de resignificação das partes do corpo que sofreram com a violência física, em especial a sexual. Isso ocorre porque seus movimentos trabalham diretamente com as partes do corpo mais envolvidas nos atos que desconstroem a corporeidade de quem passa pelas mais diversas experiências negativas ligadas à sexualidade. Os movimentos suaves e ondulatórios dessa dança aparecem como elementos de cura e transformação emocional, conseguindo alcançar conteúdos que nem sempre o discurso verbal e as terapias convencionais são capazes de atingir. Segundo os relatos de quem passa por experiências negativas em relação à sexualidade, existe um momento em que sentem “sair do corpo”. Com a dança do ventre muitas vítimas recuperam a autonomia corporal, como uma espécie de retorno ao próprio corpo; também resgatam a auto-estima e adquirem uma visão de sexualidade saudável, vital, e sagrada no sentido de ser o veículo da criação da própria vida.

Contudo, as entidades patrocinadoras de instituições que enfrentam a violência e a exploração sexual nem sempre vêem com bons olhos a prática da dança do ventre. Em alguns casos ameaçam suspender o apoio financeiro caso essa prática conste dos quadros de atividade dessas instituições. No Camará muitas das jovens atendidas se sentiram extremamente beneficiadas com as aulas de dança. Mas tiveram dificuldades em manter as aulas por falta de apoio financeiro. Chegaram a produzir acessórios para a dança do ventre com o objetivo de vendê-los e arrecadar o dinheiro necessário para pagar a professora. Após dois anos de luta para manter a atividade, a concretização do curso de formação habilitou as próprias jovens a ministrar as aulas, podendo multiplicar esses conhecimentos e atender a quem se interessar em fazer parte do projeto.

Em 28 de março de 2007, durante o Fórum Nacional de Inserção Feminina nas Instituições Policiais promovido pelo Departamento de Polícia Rodoviária Federal, em parceria com a OIT, foi inserida na programação uma vivência ministrada por Valéria Alves, monitora da do Camará. Esse foi o primeiro resultado prático do curso de formação desenvolvido em março. E teve desdobramentos excelentes, apesar da curta duração. Foi uma aula de dança com foco em movimentos suaves e ondulatórios, exercícios de consciência corporal e relaxamento. Estavam presentes cerca de 150 policiais representando todos os Estados da Federação Brasileira.

Para as policiais foi uma atividade importante no sentido de refazer o contato com a corporeidade e sensibilizá-las em relação à importância de atividades como a dança nos contextos onde se busca uma maior consciência de si e de outros. Além disso, foi dado grande destaque à atuação da OnG, porque a monitora falou com detalhes como se dá o funcionamento dessa instituição. Sua própria desenvoltura e excelente condução da atividade ilustraram que o trabalho do Camará realmente prepara seus participantes para se inserir nas várias esferas sociais, trabalhando, atuando e se posicionando. Ao final da atividade, Valéria comentou que tinha uma visão distanciada e preconceituosa em relação às instituições policiais e destacou que foi importante para ela perceber que a polícia está composta também por mulheres sensíveis, vaidosas e muito bem informadas acerca das questões sociais.

Assim sendo, podemos destacar como conseqüências dessa primeira atividade os seguintes desdobramentos: a sensibilização das policias para seus corpos; o aumento do estímulo dessas policiais para desempenhar seus papéis no combate às diversas formas de violência contra crianças e jovens, porque foram diretamente beneficiadas com uma atividade criada a partir de um resultado que deu certo proveniente desse combate; e a possibilidade de conferir maior credibilidade à própria instituição policial, que passou a ser vista por Valéria com um olhar mais suave e livre de preconceitos, o que certamente será multiplicado por ela durante seu trabalho na OnG e no cotidiano.


Referências Bibliográficas:

GROSZ, Elizabeth. “Corpos reconfigurados”. In: PISCITELLI, Adriana, GREGORI, Filomena (org.). Cadernos Pagu: corporificando gênero, Campinas, SP, n.14, 2000. (45-86).

Brasil. Ministério da Justiça. SEDH/DCA. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Brasília: MJ/SEDH/DCA, 2001.


7 de fevereiro de 2007

O Ventre dos Homens


Homem tem ventre?

Tive uma professora de dança do ventre que adorava ser sádica com os homens e sempre dizia que eles eram desprovidos de ventre, porque não podiam gerar vida, não tinham útero, ovários... O Dicionário Júnior da Língua Portuguesa de Geraldo Mattos (2001) apresenta três definições do que seja ventre

sm. 1. Parte do corpo humano e de outros animais vertebrados onde estão localizados o estômago, os intestinos e outros órgãos: abdome, barriga - O médico apalpou o ventre do menino. 2. Região que fica por baixo da pele dessa parte - O menino sente dores no ventre. 3. Parte do corpo feminino onde a criança se desenvolve antes de nascer: útero. (pg.722).

Tendo em conta as duas primeiras definições e os exemplos dados com o ventre do menino, presumo que, apesar da terceira definição, homens têm ventre.
E no Egito não só têm o ventre como dançam. Dança do Ventre.

A dança do ventre masculina é uma controvertida temática, porque no Brasil muitos de nós já assistimos a performances masculinas, peculiares, por vezes bizarras. Homens travestidos ou que se fazem femininos. Alguns que chegam disfarçados, andróginos e que em certos momentos de suas danças revelam seu segredo - o fato de serem homens. Com um certo prazer irônico, tipo "enganei vocês, vai dizer que o senhor não sentiu tesão por mim, seu pervertido!". Detesto essas danças. São de mau gosto! E não é sobre elas que quero falar. Muito menos dar força a essas práticas, legitimá-las. Dancem como queiram. Só não contem com o meu apoio e apreciação.

Pois bem, voltando ao Egito, quando lá estive em novembro de 2005 assisti a muitas dessas danças masculinas, com movimentos idênticos aos que eu aprendi em sala de aula, ondulações, tremidos, oitos de quadril, camelo... Eles dançavam, mas não eram femininos. Eram viris. Estavam por todo canto, nas esquinas, nos mercados, nas ruas, nas casas e na televisão. Conquistando as mulheres com suas danças do ventre.

Curiosa sobre essas manifestações até então por mim desconhecidas, foi com grande satisfação e surpresa que dei de cara com o livro Coreographics Politics de Anthony Shay (2002). Esse livro é uma preciosidade, por abordar as políticas coreográficas responsáveis por imagens equivocadas das manifestações artísticas em diversos países. Assunto vasto, para outros vários artigos. Mas quando fala sobre a dança egípcia masculina, Shay trouxe para a minha vida revelações surpreendentes.

Quando define o que é a dança do ventre, Anthony Shay afirma que é uma dança solo praticada por homens e mulheres. Mas a performance masculina teria, segundo ele, sido suprimida pela mentalidade colonialista dos britânicos e franceses que dominaram o Egito e desenharam um modelo do que fosse adequado ou inadequado para o cidadão egípcio que pretendesse se "civilizar". Em 1881 e 1882 se instalaram no Egito escolas com o sistema britânico de ensino, onde foram amplamente difundidos textos que continham idéias sobre o atraso, a negligência moral e a indolência dos egípcios. Também enfatizavam a necessidade de se adotar a moral inglesa. Tudo isso foi prontamente absorvido pela população.

Assim, o conhecido coreógrafo Mahmoud Reda desenvolveu estratégias coreográficas que lhe renderam suporte financeiro e apoio governamental, tendo como primeira grande mudança artística em sua companhia a proibição da dança do ventre masculina. Essa proibição, segundo Shay, seguiu as recomendações governamentais sobre quais seriam "os movimentos apropriados ou não para o corpo masculino (inglês, e agora egípcio)" (p. 148).

E então, numa atitude parecida com a da minha professora de dança do ventre, o tal coreógrafo pareceu dizer que homem não tem ventre. Ou pior ainda, Mahmoud Reda amputou o ventre dos homens egípcios, roubou-lhes o direito de dançar daquela forma. Mas graças aos deuses, essas mudanças oficiais não conseguem apagar a força vital da corporalidade humana. E, como ocorre em grandes manifestações de resistência, eles continuam a vibrar, ondular, seduzir e encantar com seus ventres masculinos.