Talvez não seja uma alegoria a invenção de uma super-heroína com esse codinome. A invisibilidade histórica feminina é um dos desafios da historiografia contemporânea, que tem buscado discutir as universalidades e localizar os excluídos das narrativas sobre o passado. A categoria Gênero surge no século XX para dar conta dessas discussões e uma das vertentes, chamada fenomenologia do mal no feminino, foi divulgada no Brasil pela pesquisadora Ivone Gebara. Ela mesma foi banida da igreja por desenvolver estudos teológicos sobre a natureza do mal relacionado ao feminino. Em seu livro Rompendo o Silêncio: uma fenomenologia feminista do mal (2000), a autora defende a idéia de que é preciso falar sobre o que nos oprime. Segundo suas palavras: "É pela memória que liberamos a palavra, que deixamos os mortos falar, que revivemos sofrimentos para denunciar o que nos impede de viver com dignidade" (p.48).
Mulheres como Eros Volúsia e Luz del Fuego no Brasil, Alessandra Belloni - italiana radicada nos Estados Unidos, Fifi Abdou - Egito, e Chandralekha - Índia, tornaram-se alvos de condenações pelo simples ato de incorporar a plenitude do feminino em seus trabalhos artísticos. Shahrazad - Palestina radicada no Brasil, também pode ser citada como exemplo. Todas elas encontraram a barreira inicial do ser mulher, o preconceito social do ser artista e um processo que costuma ser chamado de "demonização" porque abordaram temas femininos em seus trabalhos criativos. Para que vocês entendam melhor o que quero dizer, vou colocar abaixo uma resumida biografia de cada uma delas:
Eros Volúsia (1914-2004) - criadora de um estilo próprio que buscava resgatar a brasilidade, foi uma mulher revolicionária e é atualmente pouco lembrada e incompreendida. Abandonou a carreira prematuramente, devido a uma forte desilusão sobre suas perspectivas profissionais. Em 1941 foi capa da revista Life (foto).

Fifi Abdou (1953) - considerada uma das mais expressivas dançarinas do Egito, apresenta em suas danças o despojamento da sexualidade feminina. Porém, para ser valorizada como artista, em seu discurso se define como atriz e não como dançarina. Além disso, muitas profissionais da dança do ventre expressam sem nenhum constrangimento suas resistências ao trabalho dessa artista, desconsiderando seu talento por causa de suas performances espontâneas e extravagantes.

Luz del Fuego (1917-1957) - A "bailarina do povo" foi a precursora do feminismo e do naturismo no Brasil. Assumiu uma postura de vanguarda e enfrentou diversos preconceitos. Chegou a ser internada em manicômios por sua família, que não aceitava seu modo de viver e encarar a realidade. Foi assassinada quando vivia em retiro em sua ilha particular - a ilha do sol - onde criava animais e praticava o nudismo. Seu assassino - um pescador, não aceitou a recusa sexual de alguém que vivia nua e cercada por cobras. Ele interpretava a liberdade daquela mulher como um convite explícito ao sexo e, ofendido por ter sido rejeitado, a esfaqueou e jogou seu corpo no mar.

Alessandra Belloni - cantora, percussionista, dançarina e atriz, é uma das vozes mais importantes das tradicionais danças e músicas do sul da Itália. Seu trabalho consiste em resgatar tradições e rituais por meio de criação musical e produção teatral. É diretora da trupe "I Giulliari Di Piazza" em Nova Iorque desde 1979. Enfrentou sérias resistências a seu trabalho de resgate do papel feminino na Tarantela, principalmente por parte de mulheres jovens italianas.

Shahrazad - nascida em Belém - Palestina, de nome Madeleine Iskandarian iniciou sua carreira como dançarina aos sete anos de idade. Veio para o Brasil em 1979 e desenvolveu um trabalho de divulgação do que ela chama "dança do leste" também conhecida como dança do ventre. Passando por períodos de angústia ao ver seus ensinamentos deturpados país afora, atualmente sobrevive vendendo vídeos e livros. Algumas de suas ex-alunas desenvolveram carreiras de sucesso, enquanto a mestra, pioneira na abordagem dessa dança no Brasil, muitas vezes sequer é citada.

Chandralekha - renomada dançarina e coreógrafa que revolucionou e revitalizou a dança indiana. Na década de 1960 sofreu grande desilusão, sentiu-se desvalorizada e abandonada. Voltou-se para questões humanitárias e feministas. Lutou pelo ideal de reinterpretar o corpo e com coragem reinventou a identidade das mulheres artistas na Índia, com muita dificuldade. Em 1985 retornou ao cenário da dança, desenvolvendo um trabalho com identidade própria.

Essas mulheres são provas (vivas ou mortas) de que ser mulher, artista e abordar o feminino não é fácil. Sofreram resistências, discriminação, oposições, opressão, todo tipo de angústia, desgosto, desconforto... Por isso, quando encontro um blog como o da Liana (citado no post anterior), fico triste. Penso que devemos dar visibilidade a histórias como as dessas mulheres que lutam. Dar voz a suas lutas e danças. Como diz Sara Lopes na tese Diz isso cantando! - A vocalidade poética e o modelo brasileiro (1997):
A necessidade de algo concreto nas palavras associa-se à paixão do processo criativo do artista: as palavras devem ser os sentidos, devem ser as emoções para poderem revelar a profundidade da condição humana (p.29).
Sendo assim, cara Liana, aqui me despeço de você e desejo do fundo do coração que sua amargura seja curada e você possa usar suas palavras com melhores finalidades. Namastê!