30 de julho de 2009

A Mulher Invisível


Talvez não seja uma alegoria a invenção de uma super-heroína com esse codinome. A invisibilidade histórica feminina é um dos desafios da historiografia contemporânea, que tem buscado discutir as universalidades e localizar os excluídos das narrativas sobre o passado. A categoria Gênero surge no século XX para dar conta dessas discussões e uma das vertentes, chamada fenomenologia do mal no feminino, foi divulgada no Brasil pela pesquisadora Ivone Gebara. Ela mesma foi banida da igreja por desenvolver estudos teológicos sobre a natureza do mal relacionado ao feminino. Em seu livro Rompendo o Silêncio: uma fenomenologia feminista do mal (2000), a autora defende a idéia de que é preciso falar sobre o que nos oprime. Segundo suas palavras: "É pela memória que liberamos a palavra, que deixamos os mortos falar, que revivemos sofrimentos para denunciar o que nos impede de viver com dignidade" (p.48).

Mulheres como Eros Volúsia e Luz del Fuego no Brasil, Alessandra Belloni - italiana radicada nos Estados Unidos, Fifi Abdou - Egito, e Chandralekha - Índia, tornaram-se alvos de condenações pelo simples ato de incorporar a plenitude do feminino em seus trabalhos artísticos. Shahrazad - Palestina radicada no Brasil, também pode ser citada como exemplo. Todas elas encontraram a barreira inicial do ser mulher, o preconceito social do ser artista e um processo que costuma ser chamado de "demonização" porque abordaram temas femininos em seus trabalhos criativos. Para que vocês entendam melhor o que quero dizer, vou colocar abaixo uma resumida biografia de cada uma delas:

Eros Volúsia (1914-2004) - criadora de um estilo próprio que buscava resgatar a brasilidade, foi uma mulher revolicionária e é atualmente pouco lembrada e incompreendida. Abandonou a carreira prematuramente, devido a uma forte desilusão sobre suas perspectivas profissionais. Em 1941 foi capa da revista Life (foto).





Fifi Abdou (1953) - considerada uma das mais expressivas dançarinas do Egito, apresenta em suas danças o despojamento da sexualidade feminina. Porém, para ser valorizada como artista, em seu discurso se define como atriz e não como dançarina. Além disso, muitas profissionais da dança do ventre expressam sem nenhum constrangimento suas resistências ao trabalho dessa artista, desconsiderando seu talento por causa de suas performances espontâneas e extravagantes.





Luz del Fuego (1917-1957) - A "bailarina do povo" foi a precursora do feminismo e do naturismo no Brasil. Assumiu uma postura de vanguarda e enfrentou diversos preconceitos. Chegou a ser internada em manicômios por sua família, que não aceitava seu modo de viver e encarar a realidade. Foi assassinada quando vivia em retiro em sua ilha particular - a ilha do sol - onde criava animais e praticava o nudismo. Seu assassino - um pescador, não aceitou a recusa sexual de alguém que vivia nua e cercada por cobras. Ele interpretava a liberdade daquela mulher como um convite explícito ao sexo e, ofendido por ter sido rejeitado, a esfaqueou e jogou seu corpo no mar.





Alessandra Belloni - cantora, percussionista, dançarina e atriz, é uma das vozes mais importantes das tradicionais danças e músicas do sul da Itália. Seu trabalho consiste em resgatar tradições e rituais por meio de criação musical e produção teatral. É diretora da trupe "I Giulliari Di Piazza" em Nova Iorque desde 1979. Enfrentou sérias resistências a seu trabalho de resgate do papel feminino na Tarantela, principalmente por parte de mulheres jovens italianas.





Shahrazad - nascida em Belém - Palestina, de nome Madeleine Iskandarian iniciou sua carreira como dançarina aos sete anos de idade. Veio para o Brasil em 1979 e desenvolveu um trabalho de divulgação do que ela chama "dança do leste" também conhecida como dança do ventre. Passando por períodos de angústia ao ver seus ensinamentos deturpados país afora, atualmente sobrevive vendendo vídeos e livros. Algumas de suas ex-alunas desenvolveram carreiras de sucesso, enquanto a mestra, pioneira na abordagem dessa dança no Brasil, muitas vezes sequer é citada.






Chandralekha - renomada dançarina e coreógrafa que revolucionou e revitalizou a dança indiana. Na década de 1960 sofreu grande desilusão, sentiu-se desvalorizada e abandonada. Voltou-se para questões humanitárias e feministas. Lutou pelo ideal de reinterpretar o corpo e com coragem reinventou a identidade das mulheres artistas na Índia, com muita dificuldade. Em 1985 retornou ao cenário da dança, desenvolvendo um trabalho com identidade própria.




Essas mulheres são provas (vivas ou mortas) de que ser mulher, artista e abordar o feminino não é fácil. Sofreram resistências, discriminação, oposições, opressão, todo tipo de angústia, desgosto, desconforto... Por isso, quando encontro um blog como o da Liana (citado no post anterior), fico triste. Penso que devemos dar visibilidade a histórias como as dessas mulheres que lutam. Dar voz a suas lutas e danças. Como diz Sara Lopes na tese Diz isso cantando! - A vocalidade poética e o modelo brasileiro (1997):

A necessidade de algo concreto nas palavras associa-se à paixão do processo criativo do artista: as palavras devem ser os sentidos, devem ser as emoções para poderem revelar a profundidade da condição humana (p.29).

Sendo assim, cara Liana, aqui me despeço de você e desejo do fundo do coração que sua amargura seja curada e você possa usar suas palavras com melhores finalidades. Namastê!

19 de julho de 2009

Dialogando com o Blog da Liana


Dia desses recebi um email de uma conhecida que indicava a leitura de um texto sobre dança, mais precisamente um post sobre dança do ventre em um blog. O nome do blog é bastante sugestivo: Life is a Drag. A autora é uma loira, chamada Liana. Fake ou não, Liana é bastante corajosa em expor tudo o que pensa sobre o mundo, as pessoas e o universo. Dei uma olhada no post sobre dança e em outros sobre as mulheres. E resolvi abrir um espaço aqui para dialogar.

Liana, você me trouxe à lembrança um pré-projeto que escrevi em 2001 onde eu me propunha a resgatar a dignidade da dança feminina. Peguei o velho esboço, estou com ele aqui no colo e decidi que é um bom momento para publicar algumas das idéias que estavam ali e que não tiveram espaço para se desenvolver - o projeto foi rejeitado pelo Programa de Pós-Graduação em História da UnB.

Na introdução eu dizia que minha experiência como mulher e artista era repleta de tensões, conflitos e questionamentos, que os anos de pesquisa gestual sobre o universo feminino no contato com as danças de orixás e na prática da dança do ventre me proporcionaram a percepção de que algumas manifestações femininas vinham sofrendo processos de descaracterização. Em 2001 identifiquei que esses processos consistiam basicamente no esvaziamento de sentido, na vulgarização e/ou na apropriação masculina dos papéis que eram essencialmente femininos.

No texto utilizei citação retirada do artigo "De Iyá Mi a Pomba-Gira: transformações e símbolos da libido" de Monique Augras, onde a partir de imagens míticas que se referem ao poder genital feminino a autora afirma que a difusão das representações brasileiras contidas nas religiões de origem africana

têm sofrido processo de progressiva pasteurização(...). Assim é que os
terreiros tradicionais de candomblé mantêm o culto dos deuses em toda

sua complexidade - embora de modo bastante discreto no que se refere

aos aspectos mais ameaçadores da sexualidade feminina -, enquanto a

umbanda parece ter promovido, em torno da figura de Iemanjá,
um
esvaziamento quase total do conteúdo sexual. (2000: pg.15)

Além desse trecho, citei as lutas travadas por algumas mulheres para conservar ou resgatar tradições e rituais em oposição à postura de outras mulheres que se comportavam como agentes opressores. Chamei esse comportamento de "aderência" ao opressor, referindo-me a termo de Paulo Freire e dei como exemplo o trabalho de Alessandra Belloni para resgatar a Tarantella da Calábria Italiana como dança ritual erótica e selvagem de purificação e cura. Belloni encontrou entre suas maiores opositoras as mulheres jovens, por incrível que pudesse parecer. Essa rejeição fortaleceu o trabalho dessa cantora e dançarina genial que passou a refletir sobre a necessidade de libertar essas jovens mulheres das teias sociais de repressão que elas mesmas ajudavam a tecer.

Não foi difícil pular da teia de Alessandra Belloni para a de Freud que em psicanálise abordou o "enigma da feminilidade" sugerindo que as mulheres inventaram a tecelagem para cobrir sua nudez e esconder o que nada tinham a esconder, utilizando a imagem da aranha que tece para representar o símbolo da mãe fálica.

Onde quero chegar com tudo isso, prezada Liana? Você já já vai entender... Após passar por Freud, dou uma parada na psicologia moderna para falar sobre a resistência ao arquétipo da grande mãe, utilizando para isso um texto de Carlos Byington: Dimensões Simbólicas da Personalidade (1988). Esse autor diz que a Inquisição causou uma dissociação entre a objetividade e a subjetividade, transformando os componentes subjetivos do saber em crenças supersticiosas e fontes de erro, enquanto o pólo objetivo tornou-se a única fonte possível de verdade. Em seguida, Liana, chego perto de você: afirmo que os obstáculos encontrados pelas mulheres que ousam trilhar o caminho que leva ao resgate da figura da grande mãe são variados e incluem a depressão, o desânimo e a discriminação. Você ainda foi além porque agregou os fatores competição e destruição! Parabéns! Só que... Pelo que pude notar, você não está do lado do feminino ao se posicionar, mas contra ele. Estranhei, mas cada um se manifesta como quer e pode. Aliás, eu deveria ter desconfiado quando li os slogans em seu blog "Pela volta dos loucos ao hospício" e "Só a lobotomia salva". Repito: corajosa essa tal de Liana! Em plena era de movimento antimanicomial (da qual sou adepta), levantar uma bandeira dessas requer bastante coragem. Pode também ser um pedido de ajuda, não? Porque a depender da interpretação, uma das primeiras a vestir a camisa-de-força seria você mesma, querida. Estou enganada? Nem me atrevo a negar que eu estaria também entre os primeiros candidatos a ocupar o pinel!

De todo modo agradeço a oportunidade e anuncio que o próximo post deverá continuar nessa linha, porque quero falar sobre mulheres maravilhosas que amargaram em suas vidas e carreiras simplesmente porque optaram por trilhar o caminho do feminino. É o caso de nós duas, colega Liana. Ainda bem que peguei uma bifurcação e meu caminho separou-se do seu há algum tempo!


7 de julho de 2009

O Fácil é o Certo, já diziam os Titãs... *


Gosto de usar certas frases dos Titãs durante a minha vida, porque considero que elas sintetizam meus estados de espírito... E no momento, ainda que a inspiração deles tenha sido o pensador chinês Chung Tsu são as vozes titânicas cantando “o fácil é o certo / o certo é o fácil / o fácil é o certo” que não me saem da cabeça, depois de pensar sobre a dança do ventre e treinar certos movimentos. Parece óbvio para mim que quanto mais esforço eu emprego, pior sai minha dança. Difícil é ensinar isso! As pessoas estão acostumadas a “no pain, no gain” (sem dor não se ganha nada). A lei do maior esforço contaminou a mente contemporânea. Mas quando o assunto é dançar, sou pela lei do menor esforço.


Em sintonia com meus pensamentos encontrei o DVD Power Wave de Gabrielle Roth, uma pesquisadora e dançarina estadunidense que realiza há muitos anos um trabalho notável na área de dança. Sua onda poderosa, como denomina seu método de dançar, requer tudo, menos esforço. No DVD onde demonstra os cinco ritmos em que divide seu método, constantemente ouvimos a voz de Gabrielle repetindo “suave”, “sem esforço”, “deixe fluir”, “não se extenue”, “não se canse”... E por aí vai...



Muitos dos movimentos que aprendi ao longo de minha vida como dançarina só foram realmente assimilados quando relaxei. Enquanto me mantive tensa, com toda a musculatura arduamente envolvida na atividade, o máximo que alcancei foram lesões. Perceba-se aprendendo. Se estiver muito difícil, não está certo. Tem alguma coisa errada com o método. Não é com você o problema. Geralmente é com quem está ensinando. Por isso sempre fui a favor da iniciativa autodidática. Apesar das desvantagens de se estar sozinho, é mais provável que você consiga se respeitar e reconhecer limites, saber o que funciona melhor e buscar o andamento mais apropriado para se desenvolver. “Faça o que está fazendo / Não o que estou lhe dizendo”, novamente a música...


Os Titãs se inspiraram na frase de um pensador chinês do século III; Gabrielle Roth pesquisou várias culturas orientais e foi meditadora, adepta de Osho, assim como eu. Talvez seja necessário levar a sério o oriente para alcançar a transcendência. Orientar-se! Finalmente, ainda com a música em mente, deixo outra mensagem deles para encerrar o assunto: “Tanto faz como se chama / Entregue-se ao que você ama”.





*Publicado anteriormente na coluna do site Tribos de Gaia