2 de abril de 2009

Quem são as mulheres árabes?


Meu post anterior abriu uma veia no feminismo incrustado no mundo ocidental, deixando escorrer a generalização, muito comum quando se pensa em contextos culturais. Eu estava ali, assumindo meu orientalismo, mas talvez devesse explicar melhor todo o ocorrido para que não restem lacunas nessa discussão.
O orientalismo tem definições amplas e pode ser melhor estudado a partir dos textos de Edward Said. Ele criou essa expressão que dá conta de uma série de práticas e opiniões formadas a respeito do mundo oriental, com ênfase nas abordagens sobre a cultura árabe. Muitas vezes as pessoas criam conceitos e esperam encontrar entre os árabes imagens, situações e eventos que não existem na vida real. É uma tendência a fantasiar. E quando a fantasia não está presente, a realidade pode ser frustrante. Eu utilizei o conceito durante muitos anos para falar sobre meu maior tema de pesquisa: a dança do ventre. Tentando desmistificar preconceitos e cristalizações. Mas fui a mais recente vítima do orientalismo de que tive notícia nos últimos tempos.
Como havia dito, fui assistir ao programa sobre o Kalam Nawaem esperando encontrar imagens das décadas de 1940 a 1960, porque o nome do documentário era "Rainhas da TV Árabe". Na minha mente as tais rainhas só poderiam ser aquelas que eu havia visto na televisão do Cairo e de Alexandria. Por quê? Porque eu sou o centro do universo. Então o mundo tem que corresponder às minhas expectativas.
Dei de cara com outra realidade. Pode ter o verniz estadunidense, o revestimento da ganância capitalista, o formato ocidental batido, mas era algo que eu consideraria impossível de acontecer na mídia árabe. Foi um susto. E lógico que antes de avaliar mais profundamente a questão, postei meus comentários com louvações à iniciativa, dando vivas à globalização, porque afinal de contas tenho o direito de ser público, apreciar, me deliciar e dispor de uma fatia do senso comum.
Porém, antes de me debruçar sobre este recente fenômeno do mundo televisivo dos países árabes com rigor acadêmico, gostaria de perguntar a vocês algumas coisas:
Quem são as mulheres árabes?
São mulheres oprimidas, vilipendiadas, infelizes? Quem disse? Quantas são? Onde moram? O que pensam sobre isso? O que pensam sobre as mulheres ocidentais?
Quem são as mulheres não-árabes?
Eu sou? Você é? O que podemos falar sobre as coletividades humanas?
Ando lendo sobre multiculturalismo e percebi com alegria que minhas más impressões a respeito de como esse assunto é tratado no Brasil não eram apenas fruto de minha tendência a criar polêmica. É que no texto maravilhoso de Vera Maria Candau no primeiro capítulo do livro Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas, está a explicitação de tudo o que eu andava sentindo. Simplesmente existem inúmeras maneiras de abordar o multiculturalismo e no Brasil temos uma base muito forte, mas apesar disso, nossos discursos e práticas ainda estão longe de aplicar os princípios da alteridade. As duas concepções de multiculturalismo mais presentes nas sociedades atuais são: a abordagem assimilacionista e a monocultura plural (termo cunhado por Amartya Sen, 2006).
A primeira propõe uma universalização e estratégias compensatórias, onde acaba se defendendo uma cultura comum e hegemônica, tirando a legitimidade das variações de linguagem, valores, crenças, saberes, etc. Enfim, para fazer parte do todo os indivíduos acabam por abandonar o que os torna singulares.
Já na segunda abordagem a ênfase está no reconhecimento das diferenças. Mas a desvantagem fica na tendência a criar uma visão essencialista e estática da formação das identidades culturais. Os grupos se dividem em diversos segmentos, criando "verdadeiros apartheids socioculturais" (pg.22).
Posso dar exemplos das duas práticas apenas a partir do raciocínio que venho desenvolvendo sobre as mulheres árabes. Num primeiro momento, quando fiquei feliz por vê-las integradas ao mundo globalizado da mídia, dei vivas, porque assim haveria uma universalização e eu me sentiria mais próxima daquelas mulheres. Elas estavam ocidentalizadas, uma estratégia compensatória, então meu primeiro pensamento foi: "Estão vendo? As mulheres árabes não estão mais tão diferentes de nós!". Num segundo momento, quando tento apontar que existem as mulheres árabes que não usam véu, as mulheres árabes que estudam, as mulheres árabes que ocupam cargos importantes, as mulheres árabes mães de família, as mulheres árabes que se masturbam (como mostrado no programa da GNT), as mulheres árabes que se filiam ao terrorismo, etc, etc, etc, estou praticando o multiculturalismo diferencialista (ou monocultura plural).
Difícil mesmo é alcançarmos a Interculturalidade...
Mas aí é outro texto. Ainda chegarei lá!!! Allah u Akbar!

28 de março de 2009

Conversa Mole? Só se for no Brasil...


Dia desses, vi que o canal GNT apresentaria um documentário em homenagem ao mês da mulher (março é o mês da mulher, os outros são de quem?). O que me chamou a atenção era o título do documentário: Rainhas da TV Árabe. Não pude assistir na primeira exibição porque tinha o aniversário de uma amiga, mas de pronto peguei os dias onde seria exibido novamente e anotei os horários.

Aguardei ansiosa ao grande dia e esperava encontrar alguma coisa sobre as atrizes, talvez algo falando sobre Fifi Abdo, da qual sou grande fã, apesar de ela dizer publicamente que prefere ser atriz a dançarina. Feio isso, não querer ser reconhecida pela dança, mas tudo bem, eu perdôo. Afinal a dança que ela traz em seu corpo prescinde de qualquer outro mecanismo para ser gostada. E suas opiniões pessoais realmente não interferiram em meu juízo de valor.

Fui surpreendida por um documentário que falava sobre o programa de televisão de maior audiência no mundo Árabe. É uma espécie de Saia Justa (aquele outro programa da GNT). Quatro mulheres de diferentes países árabes, uma delas sempre utilizando o véu para cobrir os cabelos enquanto as outras três se exibem em figurinos pra lá de ocidentais. Fiquei pasma! Além de amealhar uma audiência em torno de 200 milhões de telespectadores a cada programa, aquelas senhoras falavam sobre temas que me impressionaram, e eu que tinha ido ao Egito em 2005 e achava que sabia da vida de lá.

É que quando estive no Egito naquele ano, tinha a impressão de ter feito uma viagem no tempo. Acho que por isso cristalizei uma impressão de que desde aquela época nada teria mudado e se eu fosse novamente até lá, viajaria novamente no tempo e estaria com a sensação cultural de alguma década do século passado. Mas não! Graças aos deuses, o programa foi ao ar em 2006 e eu lamentei não ter testemunhado tudo o que ocorreu desde então.

No documentário vi algumas das reportagens das quatro apresentadoras do Kalam Nawaem. No Brasil traduziram o nome do programa para “Conversa Mole”. Que lástima! Meu amigo egípcio me disse que na realidade a tradução deveria ser “Conversa Delicada”. Também acompanhei a opinião do público a respeito do que era apresentado na TV. Os temas eram: masturbação, homossexualidade, terrorismo, cirurgia plástica, sexo pré-marital e educação sexual. O público se manifestava de variadas formas. Um telespectador chegou a enviar uma carta onde dizia que o lugar das apresentadoras era no inferno. Elas fizeram questão de ler a carta durante o programa, como forma de polemizar a respeito de atitudes como a daquele leitor que se dizia muçulmano. Elas questionavam se era correto que um adepto do Islã se comunicasse com elas em termos de baixo calão, praguejando e desejando o que existia de pior. Pensei comigo: corajosas, as meninas! Mais uma vez me orgulhei de ser mulher.

Passei a olhar no Youtube algumas entrevistas, embora eu não consiga entender muita coisa. Com a ajuda do meu referido amigo egípcio, assisti a uma entrevista de dois atores sírios onde diversos estereótipos da sociedade árabe eram discutidos em termos bastante sérios e profundos. Também fiquei muito feliz com a entrevista de Sami Yusuf, cantor de quem sou fã desde o primeiro contato nos programas de televisão egípcios de 2005. A entrevista dele foi mais fácil de entender. Yusuf não fala árabe e a entrevista foi em inglês. A temática não poderia ser diferente. Mais polêmica. As apresentadoras tocaram em vários pontos nevrálgicos do hábito que o cantor desenvolveu de abordar temas do Al Corão. Também perguntaram como ele conseguia cantar tão bem em árabe se não falava o idioma. Ele respondeu meio constrangido que estava aprendendo e que sua pronúncia era boa justamente por causa de seus estudos corânicos.





Estou em busca de imagens do programa onde a dança seja tema. Talvez seja pedir muito. O programa ainda nem completou 3 anos de existência e já fala de homossexuais e mulheres que se masturbam. Falar de dança ali ainda seria muito chocante! Está certo que nem tudo está às mil maravilhas, o homossexual que deveria comparecer ao programa foi ameaçado de morte e teve que ser entrevistado por telefone. A mulher que dava seu depoimento sobre masturbação estava no escuro, não se podia ver sua fisionomia. Mas ainda assim, dei vivas a tanta mudança de comportamento! Para algumas coisas a globalização funciona. Kalam Nawaem é um exemplo disso.

Talvez o melhor resultado que esse programa venha a alcançar é a mudança orientalista de nossas visões ultrapassadas a respeito da coletividade árabe. Eu mesma, que morei numa família do Cairo durante minhas pesquisas de campo, fiquei surpresa com as minhas reações em relação ao documentário. Esperava menos. Ainda bem que estive enganada. Al Hamdo LeAllah!!

12 de março de 2009

E a vovó foi pro asilo...



A dança do ventre é avó da dança contemporânea. Mas a dança contemporânea, com vergonha desse parentesco, tratou de colocar a velha num asilo. Afinal, a coroa à solta por aí dá trabalho demais, subindo em cima das mesas, freqüentando boates e cabarés, locais impróprios para uma senhora de idade tão avançada...

Ironias a parte, duas das três precursoras da chamada dança moderna se inspiraram na febre orientalista que tomou conta do cenário artístico e cultural da segunda metade do século XIX, como aponta Toni Bentley no livro Sister of Salome. Loie Fuller e Ruth St. Denis buscaram nas danças orientais os temas que proporcionaram alternativas aos padrões vigentes na época. Os planos de luz que utilizavam, figurinos, véus e aromas são provas da participação da dança do ventre nas idéias de suas composições artísticas.

Fuller se destacou por trabalhar com véus, construindo estruturas de grandes proporções que cobriam praticamente todo o seu corpo. Denis foi arrebatada pela cultura oriental a ponto de alguns autores escreverem que o orientalismo era a sua religião (BENTLEY, 2002: 44). Numa época onde as mulheres só trabalhavam com dança se estivessem vinculadas a alguma grande companhia, Ruth St. Denis optou pela carreira como criadora e bailarina independente após entrar em contato com a imagem de uma deidade egípcia em um pôster. Essa imagem a "hipnotizou", fazendo com que passasse a pesquisar um estilo de dança interpretativo. Seus temas eram usualmente "exóticos" e sua dança tinha como principal meta mostrar ao público ocidental que as danças do oriente eram reais e não fantasias de contos de fadas (BUONAVENTURA, 1998: 124-6). A terceira precursora era Isadora Duncan, que se libertou do espartilho inspirada pela cultura helênica. Mas a dança do ventre, embora seja uma prática popular também na Grécia, não exerceu maiores interferências no trabalho de Duncan.



Ruth St. Denis

Os véus de Loie Fuller são muito similares aos conhecidos véus wings utilizados atualmente pelas dançarinas do ventre. Não há como saber qual dos véus veio primeiro, se Fuller se inspirou em estruturas que já existiam nas danças orientais ou se a dança do ventre se aproveitou de uma inovação da artista para criar um novo estilo. O que se sabe é que quando em 1892 viajou dos Estados Unidos - sua terra natal - para a Europa com o objetivo de dançar em Paris, Fuller já possuía uma longa carreira como performer e era conhecida por utilizar véus de seda e efeitos de luz (BENTLEY, 2002: 44). Considerando-se que a dança do ventre só passou a ser mais amplamente divulgada em solo americano na última década do século XIX, podemos imaginar que há uma maior probabilidade de que Fuller tenha desenvolvido essa criação, ampliando os véus com extensores de madeira nas pontas. Talvez ela tenha se inspirado nos véus das danças orientais e contribuído para torná-los mais compridos.



Loie Fuller

Em meados do século XIX foram organizadas exposições mundiais no ocidente que divulgaram, entre outras coisas, culturas de vários países promovendo um intercâmbio artístico onde bailarinas do oriente migraram para Europa e América. Mas as atrações mais genuínas algumas vezes não agradavam ao público, como na descrição do que aconteceu com o Palácio Persa de Eros construído na Grande Exposição Mundial de Chicago em 1893. Segundo as pesquisas de Linda Carlton, publicadas em seu livro Looking for Little Egypt, uma autêntica companhia persa foi trazida para demonstrar habilidades atléticas, o tear de tapetes e lapidação de pedras preciosas naquele palácio construído numa área especial para o entretenimento daquela exposição. Mas o público não tolerou o caráter instrutivo dessas atividades e o desapontamento transformou a atração em um grande fiasco, fazendo com que seus gerentes mudassem radicalmente a programação. Dançarinas de Paris com suas danças e roupas pseudo-orientais, rapidamente trouxeram a audiência esperada, ainda que o público fosse exclusivamente masculino (CARLTON, 2002: 20-3).

A preferência dos consumidores pela farsa fazia com que os artistas modificassem suas obras com o objetivo de permanecer em cartaz e garantir seus cachês. Com as danças se deu um processo de modificação e incorporação de elementos ocidentais tais como uso do espaço cênico e do corpo, instrumentos musicais e figurinos. Ao que tudo indica antes do século XIX não existia o que hoje conhecemos por dança do ventre. O que havia eram diversas manifestações artísticas nos inúmeros países árabes, como ainda hoje podem ser vistas. Mas quando passaram a se apresentar no ocidente, essas manifestações foram se homogeneizando, dando origem ao que hoje conhecemos como dança do ventre. Essa dança, então, teria características de várias danças de diferentes países do oriente somadas aos movimentos rebuscados das danças ocidentais. O resultado foi o desenvolvimento de uma arte híbrida que passou também a ser praticada nos países árabes e orientais como um todo, num processo de retroalimentação.

E todo esse processo fertilizou o solo cultural e artístico do início do século XX para que germinassem os primeiros passos da dança moderna, libertando os pés das sapatilhas e os corpos dos movimentos codificados do balé clássico. A partir disso, outros processos criativos pipocaram pelo mundo afora, culminando com o que hoje conhecemos por dança contemporânea. Porém, não se fala sobre essa relação entre dança do vente e as tendências artísticas mais valorizadas na área de dança. É um assunto tabu. E a dança do ventre permanece um tema praticamente invisível, principalmente nas pesquisas universitárias.

Um conceito útil para se compreender como a dança do ventre pode exercer fascínio e ao mesmo tempo permanecer subvalorizada no cenário artístico ocidental é discutido por Joshua Taylor, em seu artigo "Two Visual Excursions". Taylor fala do excitamento diante do exótico e desenvolve o conceito de "artefato etnológico"(i) para teorizar sobre o contato ocidental com obras de arte provenientes de outros contextos culturais. Segundo esse autor, independentemente de possuirmos um conhecimento prévio sobre a cultura de onde a obra se originou, podemos experimentar uma espécie de hipnose diante de suas formas.

No caso da dança do ventre essa hipnose é reconhecida e descrita por Wendy Bounaventura em dois de seus livros com a mesma citação do escritor francês Charles Gobineau, que registrou suas impressões sobre o contato com aquela dança da seguinte forma:

Horas se passam e é difícil mandar alguém embora. É dessa forma que os movimentos das garotas dançarinas afetam os sentidos. Não há variedade ou vivacidade e raramente existe uma variação para algum movimento súbito, mas os giros rítmicos exercem um torpor delicioso sobre a alma, como uma intoxicação quase hipnótica (GOBINEAU apud BUONAVENTURA, 1998: 16; 2004: 263)(ii)

Quando Taylor apresenta a noção de "artefato etnológico" ele o faz em oposição ao termo "arte". Refere-se ao modo como são denominadas as obras provenientes de outras culturas quando catalogadas no ocidente e discute a dificuldade encontrada pelos críticos de arte em defini-las, quando essas obras passam a fazer parte do acervo dos museus como objetos artísticos. Isso ocorre porque muitas vezes esses objetos são coletados com finalidades arqueológicas ou antropológicas e os textos científicos são as fontes mais utilizadas como referência para falar sobre esses "artefatos" (TAYLOR, 1980: 26-36).

As danças orientais apresentadas na Exposição Mundial Chicago, ainda que se questione sua autenticidade, arrecadaram imensas quantias em dinheiro por causa do grande choque causado às mulheres da Era Vitoriana, que viviam apertadas em seus espartilhos e aprendiam os passos de suas danças refinadas e "civilizadas" com professores especializados. O sensacionalismo despertado a partir dos movimentos improvisados e "selvagens" dos quadris das dançarinas da feira atraíram milhares de curiosos, que muitas vezes chegavam a Chicago com o único objetivo de assistir a essas apresentações (CARLTON, 2002: 46-7).

O ocidente está condicionado a um modo de ver a arte. O artigo de Joshua Taylor sugere que conceitos e idéias ocidentais precisam ser revisados. Quando se fala em dança do ventre é comum que os profissionais contemporâneos da área de dança sejam remetidos a essa noção de "artefato etnológico". Como se não fosse uma dança artística e sim algo funcional, voltado para o entretenimento, que não possui atributos válidos para ocupar um palco, para ser pesquisada como tema central de um trabalho acadêmico ou servir de inspiração para trabalhos contemporâneos de arte. A falta de isenção na avaliação de objetos de arte de outras culturas coloca em risco o sentido inerente à criação desses objetos. A carga cultural da qual os críticos de arte e outros profissionais do ocidente estão imbuídos contamina as descrições e os juízos a respeito das obras, porque raramente essa carga é reconhecida por esses profissionais.

É tanto que, mesmo exercendo papeis históricos importantes, as danças orientais não estão catalogadas nos livros mais conhecidos de História da Dança. Desacreditada a dança do ventre passou a perambular às margens do cenário artístico contemporâneo, como se fosse um membro indesejável de uma família que não quisesse tê-la por perto. E assim, a vovó mais uma vez vai para o asilo, pra onde são enviados aqueles que se deseja evitar. Mas o fato de a terem ignorado não fez com que fosse totalmente esquecida, tanto é que agora surgem pesquisadores dispostos a rasgar o véu que a deixou invisível em alguns cenários por um certo período.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENTLEY, Toni. Sisters of Salome. New Heaven: Yale University Press, 2002.

BUONAVENTURA, Wendy. Serpent of the Nile: Woman and Dance in the Arab World. New York: Interlink Books, 1998.

CARLTON, Donna. Looking for Little Egypt. Bloomington, USA: IDD Books, 2002.

MARTIN, Randy. "Dance Ethnography and the Limits of Representation" in DESMOND, Jane C (Ed.). Meaning in Motion: New Cultural Studies of Dance (Post-contemporary Interventions). Durham, NC: Duke University Press, 1997. (320-43).

TAYLOR, Joshua C. "Two Visual Excursions" in MITCHEL, W.J.Thomas (ed.). The Language of Images. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1980.(25-36).

Artigo extraído da internet:
MENDES, Ana Carolina. "A dança que vemos, que nos olha" [online]. Artigo apresentado no 13º encontro da ANPAP, Disponível na Internet:

Acesso em 22/12/2004.


i"Ethnological Artifacts" (Tradução Livre da Autora do Trabalho).
ii "Hours pass, and it is difficult to tear oneself away. This is how the motions of the dancing girls affect the senses. There is no variety or vivacity, and seldom is there a variation through any sudden movement, but the rhythmic wheeling exerts a delightful torpor upon the soul, like an almost hypnotic intoxication."
(Tradução Livre da Autora do Trabalho).

14 de agosto de 2007

A Ambivalência Corporal como Facilitadora das Diversas Formas de Exploração do Ser Humano

Nossa sociedade tem demonstrado grande ambigüidade em relação ao tema corpo e corporeidade. Percebo a existência de uma nítida separação entre corpo e mente, onde a mente é supervalorizada, bem como seus atributos racionais e lógicos. E a partir disso, poderíamos supor que o corpo tem permanecido em segundo plano, praticamente desprezado. Mas, ao mesmo tempo testemunhamos atualmente a grande preocupação com a estética corporal e os avanços da ciência no que diz respeito à longevidade e à manutenção da beleza. Todavia, essa preocupação desconsidera alguns aspectos da corporeidade pois o foco está restrito às formas do corpo em detrimento de conteúdos como a sensibilidade e a consciência corporal, os sentidos e os movimentos, entre outros.

Essa ambivalência corporal contemporânea auxilia os processos de exploração do corpo, porque a partir do momento em que a mente é privilegiada e o corpo é desconsiderado como agente da produção de conhecimento, esse corpo torna-se mero objeto, composto apenas de sua materialidade. Elizabeth Grosz no artigo “Corpos Reconfigurados” afirma que as discussões filosóficas a respeito do corpo até o final do século XX tentaram “minimizar ou ignorar completamente seu papel formativo na formação de valores” (GROSZ, 2000: p.47).

Entrando em contato com os programas de Combate e Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e ao Tráfico de Pessoas, observei a lacuna existente no que dizia respeito às considerações sobre o corpo e a corporeidade. Conversei sobre essa questão com algumas pessoas envolvidas nesses programas e encontrei no projeto TIP (Tráfico Internacional de Pessoas) da OIT (Organização Internacional do Trabalho) o apoio para iniciar um trabalho que visasse desenvolver reflexões e atividades de corpo.

As primeiras atividades foram realizadas durante o Seminário do PAIR (Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-juvenil no Território Brasileiro) do Governo Federal em parceria com Organismos Internacionais e a Sociedade Civil, ocorrido de 23 a 25 de setembro de 2006 na cidade de Fortaleza – CE. Foram oficinas de expressão corporal e sensibilização para o tema do seminário, direcionadas aos participantes inscritos. Os objetivos eram minimizar o stress corporal, visando otimizar as outras atividades durante o evento, por meio de alongamentos e auto-massagem; despertar a consciência corporal; promover reflexões sobre a transformação do corpo humano em mercadoria que pode ser explorada, traficada e violada de várias maneiras. Esses temas foram trabalhados a partir de vivências onde os participantes eram levados a experimentar sensações de limitação da mobilidade corporal com conseqüente perda de autonomia sobre seus gestos. O primeiro resultado se manifestou imediatamente após as atividades, quando os participantes conseguiram traçar paralelos entre as práticas corporais e situações vivenciadas no dia-a-dia inclusive no que dizia respeito a seus trabalhos no combate à violência sexual infanto-juvenil. Além disso, no decorrer dos 3 dias de seminário, os integrantes passaram a perceber melhor a postura de seus corpos enquanto estavam sentados durante as aulas e debates.

Ao avaliar positivamente essas atividades, comecei a pensar em aproveitar os espaços onde o corpo estivesse em foco para criar mecanismos mais eficientes de sensibilização. Considerando o tópico que visa fortalecer o protagonismo juvenil presente no Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil e percebendo que a participação dos jovens ainda era incipiente, sugeri a realização de cursos de formação e capacitação de jovens para que eles pudessem passar a ministrar as oficinas de corpo durante os eventos relacionados ao tema.

A iniciativa corajosa e pioneira de desenvolver esse projeto foi prontamente acolhida pelo Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência do município de São Vicente – SP, que acumula uma experiência de quase oito anos no desenvolvimento de ações visando o enfrentamento da violência sexual, ocupando um lugar de referência no município e na região. Encaminhando a proposta para o projeto TIP da OIT, essa instituição encontrou a parceria necessária para realizar a capacitação.

De 05 a 09 de março de 2007 foi concretizada a primeira formação que teve duas linhas principais, pois além do objetivo de formar facilitadoras para atividades de expressão corporal a OnG estava naquele momento necessitando fortalecer sua equipe para desenvolver uma atividade considerada de extrema importância pelas integrantes da instituição: a prática da dança do ventre. Por isso, o método de formação foi denominado “Método Aiua! de Formação em Dança (do Ventre)”. Os parênteses significam que apesar de ser uma especialização em dança do ventre o foco não se restringe a ela, passando também por outras abordagens da dança e pela expressão corporal.

A dança do ventre tem sido uma das formas mais eficientes de resignificação das partes do corpo que sofreram com a violência física, em especial a sexual. Isso ocorre porque seus movimentos trabalham diretamente com as partes do corpo mais envolvidas nos atos que desconstroem a corporeidade de quem passa pelas mais diversas experiências negativas ligadas à sexualidade. Os movimentos suaves e ondulatórios dessa dança aparecem como elementos de cura e transformação emocional, conseguindo alcançar conteúdos que nem sempre o discurso verbal e as terapias convencionais são capazes de atingir. Segundo os relatos de quem passa por experiências negativas em relação à sexualidade, existe um momento em que sentem “sair do corpo”. Com a dança do ventre muitas vítimas recuperam a autonomia corporal, como uma espécie de retorno ao próprio corpo; também resgatam a auto-estima e adquirem uma visão de sexualidade saudável, vital, e sagrada no sentido de ser o veículo da criação da própria vida.

Contudo, as entidades patrocinadoras de instituições que enfrentam a violência e a exploração sexual nem sempre vêem com bons olhos a prática da dança do ventre. Em alguns casos ameaçam suspender o apoio financeiro caso essa prática conste dos quadros de atividade dessas instituições. No Camará muitas das jovens atendidas se sentiram extremamente beneficiadas com as aulas de dança. Mas tiveram dificuldades em manter as aulas por falta de apoio financeiro. Chegaram a produzir acessórios para a dança do ventre com o objetivo de vendê-los e arrecadar o dinheiro necessário para pagar a professora. Após dois anos de luta para manter a atividade, a concretização do curso de formação habilitou as próprias jovens a ministrar as aulas, podendo multiplicar esses conhecimentos e atender a quem se interessar em fazer parte do projeto.

Em 28 de março de 2007, durante o Fórum Nacional de Inserção Feminina nas Instituições Policiais promovido pelo Departamento de Polícia Rodoviária Federal, em parceria com a OIT, foi inserida na programação uma vivência ministrada por Valéria Alves, monitora da do Camará. Esse foi o primeiro resultado prático do curso de formação desenvolvido em março. E teve desdobramentos excelentes, apesar da curta duração. Foi uma aula de dança com foco em movimentos suaves e ondulatórios, exercícios de consciência corporal e relaxamento. Estavam presentes cerca de 150 policiais representando todos os Estados da Federação Brasileira.

Para as policiais foi uma atividade importante no sentido de refazer o contato com a corporeidade e sensibilizá-las em relação à importância de atividades como a dança nos contextos onde se busca uma maior consciência de si e de outros. Além disso, foi dado grande destaque à atuação da OnG, porque a monitora falou com detalhes como se dá o funcionamento dessa instituição. Sua própria desenvoltura e excelente condução da atividade ilustraram que o trabalho do Camará realmente prepara seus participantes para se inserir nas várias esferas sociais, trabalhando, atuando e se posicionando. Ao final da atividade, Valéria comentou que tinha uma visão distanciada e preconceituosa em relação às instituições policiais e destacou que foi importante para ela perceber que a polícia está composta também por mulheres sensíveis, vaidosas e muito bem informadas acerca das questões sociais.

Assim sendo, podemos destacar como conseqüências dessa primeira atividade os seguintes desdobramentos: a sensibilização das policias para seus corpos; o aumento do estímulo dessas policiais para desempenhar seus papéis no combate às diversas formas de violência contra crianças e jovens, porque foram diretamente beneficiadas com uma atividade criada a partir de um resultado que deu certo proveniente desse combate; e a possibilidade de conferir maior credibilidade à própria instituição policial, que passou a ser vista por Valéria com um olhar mais suave e livre de preconceitos, o que certamente será multiplicado por ela durante seu trabalho na OnG e no cotidiano.


Referências Bibliográficas:

GROSZ, Elizabeth. “Corpos reconfigurados”. In: PISCITELLI, Adriana, GREGORI, Filomena (org.). Cadernos Pagu: corporificando gênero, Campinas, SP, n.14, 2000. (45-86).

Brasil. Ministério da Justiça. SEDH/DCA. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Brasília: MJ/SEDH/DCA, 2001.


7 de fevereiro de 2007

O Ventre dos Homens


Homem tem ventre?

Tive uma professora de dança do ventre que adorava ser sádica com os homens e sempre dizia que eles eram desprovidos de ventre, porque não podiam gerar vida, não tinham útero, ovários... O Dicionário Júnior da Língua Portuguesa de Geraldo Mattos (2001) apresenta três definições do que seja ventre

sm. 1. Parte do corpo humano e de outros animais vertebrados onde estão localizados o estômago, os intestinos e outros órgãos: abdome, barriga - O médico apalpou o ventre do menino. 2. Região que fica por baixo da pele dessa parte - O menino sente dores no ventre. 3. Parte do corpo feminino onde a criança se desenvolve antes de nascer: útero. (pg.722).

Tendo em conta as duas primeiras definições e os exemplos dados com o ventre do menino, presumo que, apesar da terceira definição, homens têm ventre.
E no Egito não só têm o ventre como dançam. Dança do Ventre.

A dança do ventre masculina é uma controvertida temática, porque no Brasil muitos de nós já assistimos a performances masculinas, peculiares, por vezes bizarras. Homens travestidos ou que se fazem femininos. Alguns que chegam disfarçados, andróginos e que em certos momentos de suas danças revelam seu segredo - o fato de serem homens. Com um certo prazer irônico, tipo "enganei vocês, vai dizer que o senhor não sentiu tesão por mim, seu pervertido!". Detesto essas danças. São de mau gosto! E não é sobre elas que quero falar. Muito menos dar força a essas práticas, legitimá-las. Dancem como queiram. Só não contem com o meu apoio e apreciação.

Pois bem, voltando ao Egito, quando lá estive em novembro de 2005 assisti a muitas dessas danças masculinas, com movimentos idênticos aos que eu aprendi em sala de aula, ondulações, tremidos, oitos de quadril, camelo... Eles dançavam, mas não eram femininos. Eram viris. Estavam por todo canto, nas esquinas, nos mercados, nas ruas, nas casas e na televisão. Conquistando as mulheres com suas danças do ventre.

Curiosa sobre essas manifestações até então por mim desconhecidas, foi com grande satisfação e surpresa que dei de cara com o livro Coreographics Politics de Anthony Shay (2002). Esse livro é uma preciosidade, por abordar as políticas coreográficas responsáveis por imagens equivocadas das manifestações artísticas em diversos países. Assunto vasto, para outros vários artigos. Mas quando fala sobre a dança egípcia masculina, Shay trouxe para a minha vida revelações surpreendentes.

Quando define o que é a dança do ventre, Anthony Shay afirma que é uma dança solo praticada por homens e mulheres. Mas a performance masculina teria, segundo ele, sido suprimida pela mentalidade colonialista dos britânicos e franceses que dominaram o Egito e desenharam um modelo do que fosse adequado ou inadequado para o cidadão egípcio que pretendesse se "civilizar". Em 1881 e 1882 se instalaram no Egito escolas com o sistema britânico de ensino, onde foram amplamente difundidos textos que continham idéias sobre o atraso, a negligência moral e a indolência dos egípcios. Também enfatizavam a necessidade de se adotar a moral inglesa. Tudo isso foi prontamente absorvido pela população.

Assim, o conhecido coreógrafo Mahmoud Reda desenvolveu estratégias coreográficas que lhe renderam suporte financeiro e apoio governamental, tendo como primeira grande mudança artística em sua companhia a proibição da dança do ventre masculina. Essa proibição, segundo Shay, seguiu as recomendações governamentais sobre quais seriam "os movimentos apropriados ou não para o corpo masculino (inglês, e agora egípcio)" (p. 148).

E então, numa atitude parecida com a da minha professora de dança do ventre, o tal coreógrafo pareceu dizer que homem não tem ventre. Ou pior ainda, Mahmoud Reda amputou o ventre dos homens egípcios, roubou-lhes o direito de dançar daquela forma. Mas graças aos deuses, essas mudanças oficiais não conseguem apagar a força vital da corporalidade humana. E, como ocorre em grandes manifestações de resistência, eles continuam a vibrar, ondular, seduzir e encantar com seus ventres masculinos.

24 de outubro de 2006

Do Corpo que Dança o Ventre


Uma dança exótica, sensual. Tambores hipnóticos e movimentos convulsivos dos quadris das dançarinas causam sensações difíceis de explicar. Algumas dizem que vicia. Não duvido. Aliás, talvez tenha sido a droga mais pesada exibida na novela “O Clone” em 2002. A overdose de dança do ventre não deixou margem de comparação com nenhuma outra dança já exibida em rede nacional. Antes disso, já tinha feito a cobra subir ralando o tchan.

Por trás dos bastidores, nenhum glamour. O próprio nome, dança do ventre, segundo dizem, foi um termo inventado no final do século dezenove, por um empresário judeu, com o objetivo de causar sensacionalismo na feira mundial de Chicago. Tornou-se febre nos cabarés da época e por causa disso, até hoje o estilo de show que apresenta a dançarina coberta de brilhos, tecidos finos e paetês é chamado "estilo cabaré", para desespero das puristas que praticam essa dança.

Já o estilo tribal, muito em voga desde os anos 90, resgata danças praticadas entre os beduínos, Berbers e Tuaregs. Incorpora, também, elementos de outras culturas, como o flamenco e a dança indiana. Apresenta trajes mais sóbrios, maquiagem ritualística e uma dança onde o foco está no movimento. Dançam mais para si mesmas do que para o público. Por ter sido desenvolvido a partir de uma pesquisa de um grupo dos Estados Unidos, é chamado “American Tribal Belly Dance” (dança do ventre tribal americana). Ah sim, é uma dança estadunidense, não nos enganemos!

As mulheres que praticam a dança do ventre no Brasil são, em sua grande maioria, adeptas do estilo cabaré. Apenas no ano de 2002 o estilo tribal chegou ao país. Ambos os estilos, em nosso país, passaram pelo filtro das estadunidenses. Nossa dança com véus segue o padrão estadunidense, com um tempero brasileiro, é claro, mas a primeira influência sempre vem de lá. Apesar de termos uma riqueza cultural inestimável, nossa baixa auto-estima nos impede de exercer uma autonomia de criação. Com o tribal, o mesmo processo se repete, embarcamos na pesquisa estadunidense. Uma lástima! Hoje vemos clones das dançarinas californianas espalhadas pelas várias cidades do Brasil. Será que a Glória Perez fez uma profecia quando escolheu o nome da novela? Dança do Ventre - Clone... Clone - Dança do Ventre... Ironias à parte me pergunto: qual o motivo de pegarmos carona nas tribos alheias, se temos um referencial tão vasto de danças, como as dos orixás e outras tantas indígenas e as tradicionais e populares?

Praticando a dança do ventre desde 1993, comecei a atuar profissionalmente em 1997. Resolvi desenvolver uma pesquisa profunda sobre essa dança. Minhas primeiras impressões não foram animadoras. Encontrei mulheres torturadas, infelizes, desgostosas com seus corpos e suas vidas. Algumas miseráveis, outras enlouquecendo. Levei esse estudo tão a sério que virou dissertação de mestrado. Foi um trabalho pesado porque quando comecei a pesquisar, em 2003, não havia textos acadêmicos sobre esse tema. Graças a iniciativas pioneiras, hoje podemos encontrar algumas boas pesquisas!

Escolhi praticar a dança do ventre por acreditar que ela me libertaria dos padrões impostos por danças que exigem desempenhos sobre-humanos e corpos moldados para sua prática. Também chamava a dança do ventre de “dança de bolso”, já que ela podia ser levada para inúmeros espaços, desde bares, restaurantes, barcos, teatros, casas, enfim, uma gama de possibilidades. Com o tempo, fui aprendendo que não era bem assim. Para tudo existe um preço (clichê, porém muito bem empregado aqui). Dependendo do local da apresentação o tratamento é o pior possível, a dançarina não é vista como artista, tem o status quase igual ao de uma prostituta. E, com a popularização dessa dança, também desapareceu a liberdade da forma física.

Antes da novela, era comum que eu escrevesse textos que explicassem o que era a dança do ventre. Hoje não é mais necessário explicar, já que a grande maioria da população pensa que se tornou expert em cultura árabe e, por tabela, dança do ventre. Confesso que preferia minhas antigas referências às mulheres misteriosas com roupas esvoaçantes e brilhantes, cabelos compridos, muita maquiagem, causando espanto, admiração e muita curiosidade a respeito daquilo que faziam.

Os corpos das dançarinas de hoje precisam obedecer à estética de modelos e atrizes. As barrigas, que eram até bem vistas por causa das tremidas e ondulações, agora são um incômodo que precisa ser retirado com urgência. A minha barriga, com estrias de uma linda gravidez esteve tão em foco depois da novela que ganhei de presente uma plástica de abdômen enquanto fazia um show em 2002. Fiquei pasma em pensar que aquela pessoa, que me ofereceu um presente tão caro, provavelmente não tinha prestado atenção à minha dança, porque minha barriga se sobressaiu. Não houve grosseria, muito pelo contrário, a pessoa me cobriu de gentilezas dizendo que eu dançava muito bem e merecia ter um corpo esculpido. Por algum tempo fiquei em dúvida. O desespero em atender ao padrão das mídias é um vírus que poderia a qualquer momento me contaminar. Mas fui imunizada por um texto que circula pela internet e que dizem que foi o Arnaldo Jabor que escreveu, embora nada que circule na rede tenha a autoria confirmada... Independente disso, o que me chamou atenção no tal texto foi a parte onde ele dizia que as mulheres querem ser mercadorias sedutoras, disputadas e consumidas como um bom eletrodoméstico ou uma BMW, “porque ‘objeto’ é feliz e não sofre”.

Constatei embasbacada que a minha dança da libertação feminina poderia ser a grande armadilha que me levaria a querer ser igual às mulheres das revistas, das novelas e comerciais de cerveja. Lembrei da depressão pela qual já havia passado, na época em que fazia tantos shows que perdi a noção do que acontecia em minha vida. Dependendo da apresentação eu conseguia me sentir como uma peça de carne na vitrine de algum açougue, um pianista de churrascaria, malabarista de circo, dançarina em programa de televisão, enfim, nunca chegava a hora em que eu seria uma deusa etérea em contato com o divino feminino. E nunca chegaria, se eu não mudasse o rumo das coisas.

Como professora, posso dizer que minhas alunas também estão torturadas por causa de seus corpos. Sonham em retirar dobras, lipoaspirar barrigas imaginárias. Eu sempre as incentivei a se aceitarem como são, até porque são realmente lindas. Tenho tentado ampliar os horizontes de nossos grupos de estudo, mas para isso é preciso sair um pouco do tema ‘dança do ventre’, explorar o universo feminino a partir de novas referências. Danças de Orixás, Danças Indígenas, mas principalmente aquela Dança Interna, onde cada uma de nós pode criar a partir de um repertório pessoal, têm sido o bálsamo de que precisávamos para reencontrar nossas essências. Como coreógrafa, percebo que esse caminho alternativo tem melhorado a impressão que a dança do ventre causa no público.

Venho realizando esse trabalho há um certo tempo, e nem assim consegui ficar imune aos efeitos da “globalização” da dança do ventre. Descobri, com muito entusiasmo, outras iniciativas parecidas com a minha. O sagrado é em cada uma de nós. O acesso não está automaticamente ligado ao aprendizado de uma dança, mas na tomada de consciência e no despertar. Um pequeno esforço é necessário. Estar atenta é tarefa constante.

Quanto à minha barriga... Bem, ela virou patrimônio das mulheres que comigo se identificam. Um dia, a mãe de uma das minhas alunas disse que, quando me viu dançar, ficou de alma lavada. Ela nunca imaginou que poderia deixar de lado o complexo de ter barriga e dançar. Depois do meu show, percebendo que eu estava feliz e segura, resolveu que também poderia. Ela não foi a primeira e não será a última a se sentir assim. Portanto, apesar de hoje em dia minha barriga estar muito menor do que na época da foto que ilustra o presente texto (emagreci 9 kilos depois de aprender a comer no Egito e voltar a malhar), não pretendo eliminar completamente um instrumento tão eficaz de elevação da autoconfiança feminina. Minha barriga é sagrada, ela é o meu ventre. O termo dança do ventre adquire, assim, uma conotação absolutamente positiva.


A autora e sua barriga

16 de outubro de 2006

Dos que Desprezam o Corpo




Aos que desprezam o corpo quero dizer a minha opinião.

O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu próprio corpo, e por conseguinte, ficarem mudos.

“Eu sou corpo e alma” — assim fala a criança. — E porque sei não há de falar como as crianças?

Mas o que está desperto e atento diz: — “Tudo é corpo, e nada mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo”.

O corpo é uma razão em ponto grande, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.


Instrumento do teu corpo é também a tua razão pequena, a que chamas espírito: um instrumentozinho e um pequeno brinquedo da tua razão grande.

Tu dizes “Eu” e orgulhas-te dessa palavra. Porém, maior — coisa que tu não queres crer — é o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas: procede como Eu.

O que os sentidos apreciam, o que o espírito conhece, nunca em si tem seu fim; mas os sentidos e o espirito quereriam convencer-te de que são fim de tudo; tão soberbos são.

Os sentidos e o espírito são instrumentos e joguetes; por detrás deles se encontra o nosso próprio ser. Ele esquadrinha com os olhos dos sentidos e escuta com os olhos do espirito.

Sempre escuta e esquadrinha o próprio ser: combina, submete, conquista e destrói.

Reina, e é também soberano do Eu.

Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido, chama-se “eu sou”. Habita no teu corpo; é o teu corpo.

Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem sabe para que necessitará o teu corpo precisamente da tua melhor sabedoria?

O próprio ser se ri do teu Eu e dos seus saltos arrogantes. Que significam para mim esses saltos e vôos do pensamento? — diz. — Um rodeio para o meu fim. Eu sou o guia do Eu e o inspirador de suas idéias.

O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta dores!” E sofre e medita em não sofrer mais; e para isso deve pensar.

O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta alegrias!” regozija-se então e pensa em continuar a regozijar-se freqüentemente; e para isso deve pensar.

Quero dizer uma coisa aos que desprezam o corpo: desprezam aquilo a que devem a sua estima. Quem criou a estima e o menosprezo e o valor e a vontade?

O próprio ser criador criou a sua estima e o seu menosprezo, criou a sua alegria e a sua dor. O corpo criador criou a si mesmo o espírito como emanação da sua vontade.

Desprezadores do corpo: até na vossa loucura e no vosso desdém sereis o vosso próprio ser. Eu vos digo: o vosso próprio ser quer morrer e se afasta da vida.

Não pode fazer o que mais desejaria: criar superando-se a si mesmo. É isto o que ele mais deseja; é esta a sua paixão toda.

É, porém, tarde demais para isso: de maneira que até o vosso próprio ser quer desaparecer, desprezadores do corpo.

O vosso próprio ser quer desaparecer: por isso desprezais o corpo! Porque não podeis criar já, superando-vos a vós mesmos.

Por isso vos revoltais contra a vida e a terra. No olhar oblíquo do vosso menosprezo transparece uma inveja inconsciente.

Eu não sigo o vosso caminho, desprezadores do corpo! Vós, para mim não sois pontes que se encaminhem para o Super-homem!”

Assim falava Zaratustra.

Trecho retirado de:
Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo, Martin Claret: 1999. (255 pp).